Com glamour ameaçado, Mafia 3 se sustenta, mas esquece várias raízes
Em primeiro lugar, e para dirimir eventuais dúvidas, preciso ser direto e reto: foi duro analisar Mafia 3. Não por causa do caráter técnico ou de outras ressalvas dissertadas nesta análise, mas sim porque sou ultrafã da franquia, da temática e do gênero, e sabemos que isso pode embaçar o julgamento.
Sou fã de carteirinha de Mario Puzo, que assina “O Poderoso Chefão”, John Grisman, Joseph D. Stone (que concebeu o livro responsável por inspirar o filme “Donnie Brasco”) e outros autores do charmoso gênero mafioso, do qual, como bom ascendente italiano e degustador de massas, sou adepto. Eu estava sedento por Mafia 3. Mais do que estou por Final Fantasy XV, mais do que estive por Gears of War 4 e Uncharted 4, muito mais do que estou com os shooters da próxima safra, Titanfall 2, Battlefield 1, Call of Duty: Infinite Warfare e afins. Mafia 3 era, definitivamente, o jogo que eu mais aguardava este ano.
Seis anos após o lançamento de Mafia 2 e 14 primaveras depois do original, a 2K finalmente nos trouxe a terceira entrada da franquia. Sob a alçada de um novo estúdio, Hangar 13, o game se passa em 1968 na cidade fictícia de New Bordeaux, mundo aberto inspirado em Nova Orleans. O jogo tem um novo protagonista, Lincoln Clay, afro-americano recém-chegado da Guerra do Vietnã. O personagem principal do game anterior, Vito Scaletta, está de volta aqui, mas tem participação coadjuvante e é um dos parceiros de Lincoln durante a aventura. Aliás, ainda bem que você está aqui para temperar esse macarrão ao lado de Lincoln, senhor Scaletta, pois há carisma de sobra!
Vito Scaletta está de volta como um personagem coadjuvante
Vingança: receita infalível
Após chegar a New Bordeaux e se reencontrar com aqueles que o acolheram no passado, Lincoln é traído por mafiosos sulistas e vê todos os amigos serem mortos brutalmente, bem diante dos seus olhos. Como único sobrevivente da chacina, o boina-verde, após se recuperar de uma bala que atravessou a cabeça e saiu por trás do crânio, inicia sua trajetória de vingança para matar Sal Marcano, o responsável por orquestrar a traição.
Se por um lado a vingança é um prato que se come frio, por outro é um tema que sempre funciona nas mãos da indústria do entretenimento. O cineasta Quentin Tarantino, por exemplo, usa e abusa da fórmula, sem receio de ser feliz, desde os idos de “Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction”.
Diversos artistas e criadores de conteúdo se apossam da receita em caráter multimídia. Sidney Sheldon era um adepto da fórmula em seus romances hollywoodianos. Stephen King também gosta de brincar com ela em inúmeras de suas histórias de terror/suspense/sobrenatural. O próprio Mario Puzo também fez isso em “O Poderoso Chefão”, “O Siciliano” e outras obras. Na máfia, a vingança sempre funciona muito bem.
No caso dessa franquia tão querida da 2K, existe um intervalo muito grande entre um jogo e outro, tempo suficiente para manter o que é bom, aprimorar o que é razoável e descartar o que não funciona mais. Especialmente porque estamos numa indústria movida pelo hype, em que as expectativas muitas vezes sobrepõem o produto em si. Será que Mafia 3 também foi vítima disso? Não necessariamente, mas existem alguns pontos que precisam ser observados.
New Bordeaux, 1968: inspirada
Mundo aberto paradoxal: lotado e vazio (e sem viagem rápida, meu Deus)
Mafia 3 tem um generoso mundo aberto, embora pouco expressivo para os atuais padrões do gênero. Ao mesmo tempo em que a cidade é lotada de atividades para fazer, ela é vazia, pois a interação com os elementos do cenário ficou muito limitada em relação aos dois jogos anteriores. Mas assim: MUITAS coisas legais foram removidas. Do tipo:
- Multa por exceder a velocidade;
- Entrar num trem para fazer viagem rápida, algo que existe no primeiro Mafia, um jogo de 2002, sendo que, em Mafia 3, você vê um monte de trilhos que só decoram o ambiente;
- Ir para sua casa e interagir com a cozinha, o quarto e o banheiro;
- Comprar roupas novas em lojas, mudar o visual de Lincoln e personalizá-lo à sua maneira, um passatempo sensacional de Mafia 2;
- Amassar veículos com porretes;
- Encher o tanque do carro em postos;
- Dar seta ao fazer uma curva;
- Engraxar o sapato;
- Usar o lava-rápido...
... Não há mais nada disso em Mafia 3. Numa inevitável comparação com os dois jogos anteriores, o novo título perdeu essa alma. Aliás, não há viagem rápida. Que game de mundo aberto atual não tem esse recurso? Ir de uma ponta a outra cansa muito depois de um tempo. Seria uma rápida mesclagem da essência da série com os padrões atuais...
O mundo é bonito, mas vazio em alma
Claro que os aspectos elencados acima são miúdos de interação. Para muita gente, não fazem diferença. Mas, para tantas outras pessoas, principalmente as mais puritanas (como este que vos escreve), a ausência de tudo isso pesa. Todos esses pequenos detalhes, quando somados, criam uma imersão maior para a atmosfera do jogo, que aqui é muito superficial.
Para alcançar os chefes do submundo, Lincoln deve realizar uma série de tarefas criminosas, como invadir bases inimigas, transportar cargas de heroína, perseguir suspeitos sem ser visto, queimar trailers e se apossar dos subchefes locais, entre outras atribuições similares. Com isso, o protagonista ganha dinheiro e expande sua influência entre os mafiosos da região. As mecânicas de stealth funcionam muito bem e têm sangue de sobra vindo da faca de Lincoln.
O tiroteio, por sua vez, também agrada e oferece um belo arsenal. Pena que a inteligência artificial não vai de encontro a esses benefícios: o comportamento dos inimigos pode ser uma presepada em algumas situações, principalmente quando eles correm para o meio do fogo cruzado feito galinhas desgovernadas só para buscar cobertura.
Alguns bugs ocasionais também atrapalham seu desempenho; às vezes, a skin dos bandidos simplesmente desaparece e eles parecem aqueles bonecos de posto com os braços flácidos, esvoaçantes. Há problemas com iluminação e serrilhados em diversos momentos também. “Ah, mas isso será corrigido com atualizações”. Tá certo, mas jamais devemos nos “acostumar a essa espera”.
O jogo tem de ser analisado tal como está agora. Atualização não faz parte de uma avaliação. É como uma prova: se você foi mal, não cabe chegar ao professor e dizer “ah, mas eu vou estudar essas questões e atualizar minhas respostas na prova depois, aí você corrige novamente”. Isso não existe. Decerto, essas ressalvas técnicas serão ajustadas, sim, no futuro.
As mecânicas de stealth são simples e funcionais
Missões: divertem, mas entram em looping
Dentro da variedade de missões de Mafia 3, você fará as mesmas coisas exaustivamente. Os objetivos sempre se resumem a invadir uma base, matar os capangas, transportar drogas, perseguir alguém. A maneira como tudo isso acontece é igual; uma missão parece imitar a outra. É cíclico. Esse é um problema de mundo aberto – que também aflige Mad Max, Watch Dogs e Far Cry Primal – que os mais sábios são capazes de corrigir. GTA, Sleeping Dogs e outros mundos abertos urbanos conseguem se destacar por oferecer tarefas diferentes dentro das missões oferecidas.
Se quisermos ir além nesses exemplos, podemos lembrar também de The Witcher 3, que poderia muito bem ser maçante, em parte por causa de sua vultosa fantasia medieval, mas conseguiu segurar a empolgação do jogador o tempo todo graças à sua oferta de objetivos diferentes. Essa comparação é válida apenas para observarmos uma concepção de mundo aberto; é óbvio que Mafia 3 e The Witcher 3 destoam completamente.
O que quero dizer é: um mundo aberto precisa incentivar a exploração. Ele precisa oferecer um parque de diversões com atrações distintas. Dentro dessa diversidade, deve haver criatividade, um tempero adicional, diferenciais. Ora, se outros jogos do gênero conseguem fazer isso, porque Mafia 3 não tem a mesma perspicácia? Ele até tem colecionáveis interessantes para você encontrar, como Playboys, capas de disco e quadros, mas não há qualquer incentivo ou recompensa para isso. Nem mesmo troféus, conquistas ou desbloqueio de extras in-game. Só servem para os completistas de plantão mesmo.
Por sorte, a trilha sonora que te acompanha no caminho é sensacional. Na verdade, a década de 60 é assim, musicalmente falando: Janis Joplin, Jimi Hendrix, Rolling Stones, Steppenwolf, Roy Orbison, Ramones, Status Quo e Creedence são apenas alguns dos nomes lendários das mais de 100 músicas espalhadas nas três rádios do jogo. O controle dos veículos, aliás, funciona muito bem. Cada um tem seu próprio peso, sua própria física, seu jeito único de ser manuseado. E isso vale para as lanchas também. Você inclusive pode optar por um modo simulador no menu.
O controle de veículos é macio e acessível
New Bordeaux: ótima remontagem do período
A recriação da época em que o jogo se passa é muito bem construída. Num período em que o mundo sai da ressaca da Segunda Guerra Mundial, New Bordeaux, em 1968, é um retrato interessante inspirado em Nova Orleans. A questão racial é amplamente abordada no enredo.
Imponente, o protagonista Lincoln Clay enfrenta as mazelas de uma sociedade dividida e o racismo provinciano da região sulista dos Estados Unidos. Inclusive há um comunicado da própria 2K logo na abertura do game informando que, para melhor retratar o período, diversos termos e alcunhas relacionados aos negros são utilizados. Os outros personagens são igualmente carismáticos, com trejeitos, preceitos, vícios e gírias locais. Conseguem enriquecer o enredo.
New Bordeaux é bem ambientada e consegue recriar o clima de um período conturbado
Veredito
Mafia 3 poderia dar um impacto muito maior. Apesar da intrínseca narrativa, dos personagens carismáticos e da competente remontagem do período em que o jogo se passa, perdeu-se grande parte da essência estabelecida nos títulos anteriores. Ao constatar a quantidade de coisas que foram removidas, não há como negar um certo desapontamento, especialmente aos fãs mais puritanos.
Além disso, há deslizes técnicos notáveis: fraca inteligência artificial, bugs típicos de mundo aberto, serrilhados e problemas com iluminação parecem atingir, em cheio, a versão de consoles. Nos PCs, o produto não está muito bem otimizado em configurações que deveriam atender a qualquer jogo das demandas atuais.
Essas mudanças e remoções foram escolhas que o Hangar 13 decidiu fazer, estúdio novo que assumiu o desenvolvimento de Mafia 3. Por outro lado, há benefícios muito bem-vindos, já consagrados da série: enredo envolvente, trilha sonora de muito bom gosto, ótima física de veículos e um vasto arsenal de armas de fogo garantem momentos divertidos ao lado de Lincoln Clay, protagonista que esbanja carisma em New Bordeaux, uma cidade bem construída e cheia de inspirações da época.
O arsenal é mafiosamente interessante
A carga da narrativa, no entanto, vai na contramão do primor técnico. Não há um diferencial nas mecânicas de Mafia 3, mas sim fórmulas desgastadas dos mundos abertos. E isso pesa mais ainda quando paramos para pensar que os dois jogos anteriores ao menos tentaram ousar diferentes interações ao alcance do jogador. Por mais que sejam pequenas coisas, todas elas, quando somadas, criam uma atmosfera mais imersiva que não existe em Mafia 3 da mesma forma.
Opiniões existem exclusivamente a cada um de nós. Acreditem: me doeu no coração dar essa nota, eu que sou um jogador tradicional, fã do gênero e da franquia. É complicado aplicar um valor numérico a uma experiência tão única a cada um. Se para mim Mafia 3 é um 73, para você pode ser um 80, ou 90, quem sabe mais. E, se dei 73, é porque gostei do jogo e o recomendo.
Concordando ou discordando de tal nota, converse saudavelmente conosco na seção de comentários, sem haterismos gratuitos porque um ponto positivo X ou um ponto negativo Y é diferente do que você pensa. Estamos sempre abertos ao diálogo educado.
Ainda assim, e apesar de ser um prato frio, a vingança é uma receita que funciona. Ter um gostinho do charme da máfia na pele de um protagonista tão motivado, em meio ao preconceito e ao glamour, é um prato cheio aos fãs da temática. O resto é história.
- Reconstrução decente de um período conturbado
- Precisão histórica
- Personagens carismáticos, críveis, com destaque ao protagonista
- Narrativa com o toque macarrônico da máfia
- Gameplay acessível
- Trilha sonora fenomenal
- Inteligência artificial cheia de presepadas
- Cadê a viagem rápida? Exaustão ao andar pra lá e pra cá depois de um tempo
- Diversos elementos bacanas de interação dos games anteriores foram completamente removidos
- Missões repetitivas, que carecem de criatividade, mesmo que existam dentro de uma variedade
- Skins que desaparecem, braços flácidos, texturas que somem e outros bugs típicos
- Cheio de serrilhados
Nota do Voxel