É hora de dançar novamente aquele fandango impiedoso
“With bony hands I hold my partner
On soulless feet we cross the floor
The music stops as if to answer
An empty knocking at the door
It seems his skin was sweet as mango
When last I held him to my breast
But now we dance this grim fandango
And will four years before we rest”
(Olivia Ofrenda)
Prepare suas castanholas e tire a poeira do seu melhor par de calçados para sapateado, porque ele está de volta. Trazido novamente de um longo sono embalado por faixas de jazz e apitos nauseabundos de navios fantasmagóricos, o vendedor de pacotes de viagem póstumos Manuel “Manny” Calavera aparece para provar que, e se tratando de estilo, inteligência e senso de humor, poucas escolas do entretenimento eletrônico podem fazer frente aos adventures.
E se em 1998 Manny já era capaz de “vender as vacas” a quem “houvesse comprado a fazenda”, em Grim Fandango Remastered ele se mantém afiado como a própria foice — aquela guardada próxima de onde ficava seu coração. Dessa forma, o clássico da Lucas Arts é apresentado às novas gerações com tudo o que conquistou as audiências ao final dos anos 90, adquirindo ainda uma nova maquiagem para disfarçar o peso dos anos.
Grim Fandango ganhou nova iluminação, por exemplo, com vários detalhes projetados nas sombras mordazes dos cenários noir. Ademais, seria impossível negar também certo tratamento conferido aos antigos gráficos poligonais. É claro que, todavia, seria impossível não questionar: “Um jogo com semelhante relevância histórica não mereceria uma reconstrução mais parruda?”. Possivelmente.
Igualmente, seria impossível a falta de certas facilidades ao apresentar um jogo consideravelmente “difícil” aos jogadores atuais — não há sequer um manual, por exemplo, algo que constava no game original. Entretanto, todos os pontos fortes ainda estão aqui: a história cativante, o humor afiado e alguns dos personagens mais carismáticos da história do entretenimento eletrônico. Vale a pena olhar mais de perto.
“Adventure” em um pacote completo
Dizem que a necessidade é a mãe da invenção, e isso realmente pode fazer sentido. Estritamente falando, o gênero denominado de “adventure” — responsável por inúmeros ícones nos anos 90 sob a batuta da Lucas Arts — nasceu e assumiu seu formato consagrado por conta de limitações técnicas.
Na impossibilidade de levar para os sistemas da época grandes movimentações tridimensionais, os criadores acabavam por depositar muito mais nas histórias e na atmosfera de seus títulos — cujos cenários normalmente traziam belas locações estáticas. E, sim, nesse ponto, Grim Fandango é uma espécie de marco; um epítome de um gênero.
Afinal, todos os elementos estão aqui. Conforme o vendedor de pacotes Manny Calavera atravessa seu conto de quatro anos (convenientemente divididos em capítulos), somos bombardeados com um bom humor que vai facilmente do nonsense à crítica social ácida. Há também algumas locações inesquecíveis, como o “Blue Casket” e seu palco aberto para declamação de poesias — de onde saiu o belo texto que abre esta análise.
Uma época que exigia mais do jogador
Ao jogar novamente Grim Fandango depois de todos esses anos, torna-se claro que a indústria do entretenimento à época esperava... Um pouco mais de seus jogadores. Dessa forma, não deve ser raro que um ou outro jogador da “nova guarda” acabe se sentindo frustrado ao buscar o próximo passo do pé ossudo de Manny pela aventura. Isso porque quase nada é dado aqui — e algumas soluções beiram o francamente improvável (a empilhadeira... Ah, a empilhadeira).
Obviamente, isso não poderia ser um problema. Entretanto, vale lembrar que, diferentemente do game original, aqui não há um manual de instruções acompanhando. Dessa forma, você terá que explorar um bocado enquanto tenta descobrir como algumas coisas funcionam — isso ao mesmo tempo em que mantém afastada a tentação de buscar por soluções rápidas no Google.
Seja como for, um rápido tutorial aqui não faria nenhum mal. Quem buscar, entretanto, encontrará apenas um esquema de botões — e muito material para testar a massa cinzenta.
Grandes personagens
Grim Fandango Remastered é um verdadeiro desfile de grandes personagens e, de fato, é revigorante saber que as novas gerações poderão conhecer Salvador “Sal” Limones, Eva, Mercedes Colomar e também Glottis, o inesquecível brutamontes de bom coração que serve como “side kick” para o não menos icônico Manny.
Embora boa parte dos personagens aqui tenha características um tanto caricatas, isso certamente se complementa bem não apenas com o estilo dos jogos adventure como também com a tradição de novelas noir às quais o genial Tim Schafer faz uma óbvia homenagem aqui.
Há a moçoila “sagrada”, a heroína pura que cai vítima das circunstâncias; há o detetive cheio de tiradas infernalmente geniais; há vilões igualmente maldosos e cheios de classe. Enfim, um celeiro de personalidades que se mantêm na memória.
A dublagem clássica para o português
Quando comecei a jogar Grim Fandango Remastered, a primeira coisa que fiz foi alterar as configurações de diálogo e iniciar o jogo com uma tremenda expectativa. Mas, sim, estavam todos lá. Todos os ótimos dubladores que trouxeram a atmosfera única do título original para o português durante a década de 90 — mesmo com algum eventual exagero estilístico, caso de Don Copal, por exemplo.
Naturalmente, o áudio original em inglês também está disponível, juntamente com legendas em português. Entretanto, fica a recomendação: pelo menos dê uma ouvida no bom trabalho de dublagem feito em território tupiniquim — mesmo correndo o risco de que parte dessa impressão sejam as lembranças ternas de certo editor do BJ.
(Nota: embora as versões preliminares possam apresentar problemas na dublagem em português durantes as animações, nos foi garantido pela desenvolvedora que o problema já havia sido detectado e que será corrigido rapidamente.)
Proporção de tela (aspect ratio)
Grim Fandango Remastered representa a chance de as novas audiências experimentarem o que havia de melhor na época dos adventures. Dessa forma, é de estranhar que a Double Fine tenha deixado passar a oportunidade de realmente trazer Grim Fandango para a oitava geração de consoles (ou para as configurações mais modernas dos PCs).
Embora algumas texturas realmente tenham sido retrabalhada e, de forma geral, as sombras jamais tenham se projetado em tantos detalhes, causa estranhamento, por exemplo, que ainda seja possível jogar Grim Fandango apenas na proporção de tela original de 4:3 — aquele “quadradinho” típico dos computadores/monitores da época.
Embora seja possível esticar a imagem, entretanto, o resultado acaba sendo ainda pior do que as duas barras verticais que acompanham a proporção default — dando a impressão que Manny ganhou vários quilos durante esses anos todos de aposentadoria compulsória.
Sem salvamento automático
Tudo bem, Grim Fandango originalmente não possuia o recurso de salvamento automático — já que esse simplesmente não era o padrão à época. Entretanto, é provável que nem mesmo o mais purista — o mais “old school” — dos jogadores não considerasse que essa seria uma boa adição para um velho (e punitivo) adventure.
E o preço pode ser alto: caso você se esqueça de salvar — não obstante o aviso do jogo logo no início —, não é totalmente impossível que o jogo acabe travando lá pelas tantas (pelo menos na versão para PC, o que realmente nos aconteceu aqui)... E todo o avanço seja perdido. Portanto, é melhor manter a rotina: após qualquer avanço, vá e salve o jogo nas opções.
Glitches eventuais
Difícil dizer que alguns problemas que podem ocorrer durante Grim Fandango Remastered são novidade ou uma herança do título original. Entretanto, é inegável que há aqui uma dose considerável de glitches que, embora não comprometam a jogabilidade, certamente tiram um pouco do brilho — até por serem elementos facilmente corrigíveis, imagina-se.
Alguns exemplos: membros trêmulos de alguns personagens; cantos do cenário que podem acabar aprisionando; a cabeça de certo agente de viagens flutuando inexplicavelmente e desaparecendo às vezes — sim, isso realmente pode ocorrer e é bizarro até mesmo para os padrões de Grim Fandango.
Jazz orquestrado
Indiscutivelmente, a trilha sonora de Grim Fandango é a responsável por grande parte da atmosfera “noir” tão característica da criação de Tim Schafer. Entretanto, às vezes é possível melhorar aquilo que, convenhamos, já beira a perfeição.
Foi o que prometeu e cumpriu o compositor Peter McConnell. O revigorado Grim Fandango traz sua trilha sonora original orquestrada, incluindo performances impecáveis da Orquestra Sinfônica de Melbourne. Nada mal, de fato.
Comentários do diretor
Eis aqui uma adição realmente digna de um remake. Grim Fandango Remastered traz a opção adicional de liberar os “comentários do diretor” — no caso, tiradas cômicas/nonsense dos principais responsáveis pelo desenvolvimento do game, incluindo, naturalmente, o próprio Tim Schafer. Vale notar, entretanto, que as tiradas dos criadores não trazem (a princípio) nenhum tipo de spoiler, de forma que se pode ativá-las logo na primeira jogada sem muito risco.
Frases epistolares
Tim Schafer parece ter um talento realmente atípico para forjar aquelas frases que bem poderiam servir como o epitáfio de alguém. São máximas que flutuam tranquilamente entre o bom humor, a crítica mordaz e a observação oportuna. Vale conferir algumas delas.
- “É o medo da morte que nos transforma em monstros.”
- “Se eu assustar alguém até a morte, terei um cliente, mas serei processado por prática comercial antiética.”
- “Por mais tentador que seja, não posso pular na caixa de coco imunda de um gato gigante.”
- “Você tem cheiro de bacon e opressão, cara!”
- “Meu chefe está sempre me dando esses livros motivacionais sobre vendas — ‘Eles compraram a fazenda, agora lhes venda as vacas’... Coisas assim.”
- “Eu acabei de trancar uma porta aberta. Estranho... Embora simbolicamente instigante.”
A arte do envelhecer bem
Grim Fandango foi um jogo arrebatador quando deu as caras em 1998, trazendo consigo o que de melhor havia se desenvolvido sob o termo “adventure” em mais de dez anos. Não muito distante de completar duas décadas de existência, pode-se dizer que praticamente nada mudou. A criação mor de Tim Schafer se mantém como um jogo soberbo, envolvente e incrivelmente cheio de estilo e bom humor.
Na verdade, apenas trazer Manuel “Manny” Calavera em uma edição plenamente funcional com as plataformas atuais já seria um feito de mérito. Entretanto, a promessa de um “remake” talvez tenha jogado as expectativas um pouco acima do mundo dos mortos. Afinal, a despeito de algumas texturas, das condições de iluminação e da revigorada trilha sonora, não há nada aqui que realmente traga o velho adventure para as tecnologias atuais (nem mesmo o salvamento automático).
Entretanto, isso jamais deveria ser bastante para balançar a vontade de alguém que possa considerar recriar os passos do agente Calavera através de sua busca de quatro anos; em suas noitadas no Blue Casket; em seus diálogos memoráveis, forjados em uma escola que parecia particularmente prolífica em bom humor e genialidade — em igual medida, e possivelmente pelo mesmo motivo. Certamente vale a pena dançar novamente aquele fandango impiedoso.
Categorias
- A oportunidade de visitar um dos melhores adventures já produzidos
- Personagens icônicos
- Atmosfera noir inconfundível
- Melhores texturas e projeção de sombras
- História igualmente genial e bem humorada
- Dublagem original do game para o português
- Nova função traz comentários dos desenvolvedores (incluindo Tim Schafer)
- Proporção de tela ainda em 4:3
- A falta de salvamento automático pode causar alguma dor de cabeça
- Problemas gráficos eventuais (glitches)
Nota do Voxel