God of War evolui em tudo, humaniza Kratos em dose épica e é inesquecível
Como diria o Capitão Nascimento, dos filmes “Tropa de Elite”: o inimigo agora é outro. E não vale ilustrar o álbum de figurinhas com personagenzinhos da Marvel, oriundos de “Vingadores” e afins. Nada de lutinhas cheias de piadinhas e humor forçado. Não estamos na Marvel, na DC ou em nenhuma outra casa de heróis: estamos nas terras nórdicas de God of War, que migrou da mitologia grega para a escandinava, categorizada no que se pode referir aos países localizados no norte da Europa, como Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia.
É lá que Kratos foi parar depois de ter aniquilado o panteão inteiro do Olimpo. A essa altura do campeonato, podemos falar abertamente sobre os títulos anteriores sem preocupações com spoilers, certo? Eles carregam suma importância para a composição desta análise. Portanto, todo mundo sabe que Kratos exterminou brutalmente Poseidon, Ares, Helios, Hermes, Cronos, as Irmãs do Destino, Hércules, Hades e outros que conspiraram para que o espartano pagasse uma dívida de alma com o capeta – neste caso, Zeus, que orquestrou a trama contra o fantasma de Esparta. Ares foi apenas uma porta de entrada que serviu, de certa forma, como bode expiatório ao ex-general espartano.
Um calote injusto, uma infração ao bom senso por puros interesses escusos: os deuses, no fundo, só querem isso. Curioso utilizar God of War para traçar os paralelos que a franquia tem com o que essas figuras lendárias representam em suas respectivas mitologias – e eis que a série consegue respeitar a fidelidade dessa natureza ao mesmo tempo em que insere sua própria ficção. É o que Quentin Tarantino faz em seus filmes, por exemplo, assim como Hideo Kojima executou em Metal Gear. “Bastardos Inglórios” tem a Segunda Guerra Mundial, mas mostra uma versão alternativa de Hitler. Metal Gear tem o patriotismo norte-americano e também terrorismo. Enfim, e por aí vai.
O que muitos não conseguem com maestria, numa era em que as reinvenções se fazem cada vez mais necessárias, é saber evoluir. Evoluir significa mudar, abrir mão de raízes e, ao mesmo tempo, respeitar o DNA que pulsa latente nas entranhas, nas veias e nas artérias. Por falar em entranhas, estamos quase chegando à brutalidade de God of War aqui no assunto, mas, antes de falar sobre tripas esvoaçantes, que são importantíssimas, há que se falar sobre humanização.
Senhoras e senhores, God of War está aqui. Renascido.
Saiu dos braços de Morfeu, Kratos?
Para quem não se lembra, Morfeu, o deus dos sonhos, tem participação fundamental na primeira metade de Chains of Olympus, prequel lançado em 2008 para PSP, exatamente uma década atrás. Apesar de o personagem não dar as caras, sua presença em segundo plano é determinante como mandatário de capachos a Kratos.
Ele também é referido em God of War: Ascension e God of War 3 em seu envolvimento com o traíra Helios (cujo contexto se dá em Chains of Olympus). Não se sabe que fim teve Morfeu com o mundo em perdição deixado por Kratos após trucidar Zeus no final do terceiro game, mas uma das teorias é de que o deus dos sonhos teria colocado Kratos em sono profundo para que ele despertasse a milhares de quilômetros da Grécia, em território nórdico. Se eu teorizar mais que isso, corro o risco de dar spoilers do novo God of War, mas fique na paz: é apenas uma hipótese.
Kratos está vivo. Kratos está bem. Kratos está saudável, atlético, mais velho e até aderiu à moda barbuda do mundo atual. Penteadinha, em formato V, volumosa e macia. Sim, é o mesmo Kratos de outrora! Com a cicatriz deixada por Ares em seu olho direito; a ferida no abdômen deixada por Zeus em God of War 2, quando o comandante dos deuses perfurou o estômago do espartano; as cinzas de sua esposa e sua filha grudadas no corpo, com menos intensidade; as marcas das correntes apregoadas por Ares nos pulsos. Kratos voltou.
Muitos haviam entendido ou pressuposto que o novo God of War seria um reboot da franquia – até porque não carrega nenhum subtítulo ou número, mas sim apenas “God of War”, exatamente como o original nasceu, em 2005, precisamente 13 anos atrás. Não: a nova aventura é um reinício. É diferente de reboot. É um despertar que surgiu na hora certa da atual geração, que pouco a pouco se caminha para a reta final. É o novo respiro que Kratos dá após muito tempo adormecido. E ele traz companhia.
Ufa, Atreus não é um pentelho!
Confesso que uma das minhas maiores preocupações com o jogo foi Atreus. Eu tive um errôneo preconceito contra o moleque quando o vi ao lado de Kratos, como filho do homem. Sei lá, nessas horas o sentimento de fã fala mais alto do que a razão – eu quero ver Kratos estraçalhando tudo, quero que ele seja a história. Graças aos deuses nórdicos, tão crápulas quanto os gregos, mordi a língua.
Atreus é um garoto gente fina. É uma daquelas crianças educadas, com quem você sente vontade de conversar e chega até os pais para elogiar: “Parabéns, seu filho é muito bacana”. O menino não é um fardo; trata-se de uma agradável companhia.
Ele tece comentários inteligentes sobre o mundo ao seu redor, não se acha o dono do pedaço e, apesar de ser um pupilo que anseia pelos ensinamentos que o pai tem a transmitir, comporta-se de maneira humilde, ciente de suas limitações. A estrela do show (ainda) não é nem deve ser ele, mas sim Kratos.
Essa relação cresce de forma orgânica ao longo da jornada. Nada é forçado; os dois se desentendem em alguns momentos – como qualquer outra dupla –, mas fazem as pazes e conversam como pai e filho. Kratos é e sempre foi frio, rude, insensível, grosseiro. Até com quem não merece.
Coisas triviais como 'obrigado', 'por favor' e 'com licença' não existem no vocabulário de Kratos. E precisam?
A construção de Kratos ao longo de mais de uma década serviu para imprimir ao guerreiro uma personalidade rusguenta. Coisas triviais como “obrigado”, “por favor” e “com licença” não existem no vocabulário do ex-general. E precisam? Essa indelicadeza se impregnou nele ao longo dos jogos da franquia – porém, aqui, ele está mais humano e protetor do que nunca.
É a mesma contemplação que vemos em The Last of Us, com Joel e Ellie; em Uncharted 4, com Nathan e Sam; em Uncharted: The Lost Legacy, com Chloe e Nadine. Essa química já se tornou uma receita e vem sendo utilizada a esmo nos jogos da Sony. O elo entre personagens com temperamentos destoantes se traduz em algumas andanças que essas duplas fazem – às vezes, bem de leve, elas são meio extensas e amornam o ritmo. God of War também herda essa característica. Ainda assim, esses momentos ociosos de Kratos e Atreus são breves; o novo embalo faz o tempero funcionar bem, inclusive no combate. Já chego lá.
História: fachada para algo MUITO maior
A história de God of War é bem simples: nesse novo habitat nórdico, Kratos vive com Atreus e deve realizar um desejo de Faye, a mãe do garoto: atirar as cinzas dela do cume da montanha mais alta do local. A jornada até lá, no entanto, reserva um monte de surpresas. Serei o mais conciso possível para enxugar spoilers.
Ao longo do trajeto, Kratos e Atreus encontram aliados que começam a dar o sabor inédito da franquia. Os anões Brok e Sindri, por exemplo, são os ferreiros das armas e dos equipamentos que nossos nobres aventureiros portam. A Serpente do Mundo – Jörmungandr, em seu nome nórdico proveniente da mitologia oficial e presente no bestiário do jogo – leva esse nome por conta de seu tamanho colossal, que praticamente rodeia todos os cantos do mundo. Mimir, que é o mais sábio dos deuses nórdicos, também já apareceu em trailers. Na mitologia original, ele teve a cabeça decepada, mas Odin manteve o deus vivo para não perder seus conselhos... Isso tudo na mitologia original :).
Durante suas travessias, os dois viajantes, inseridos num mundo devidamente mapeado, podem embarcar em tarefas secundárias e se esbaldar em inúmeros colecionáveis, que resguardam cerca de 40 a 50 horas a quem quiser alçar os 100% (ou a platina). God of War engloba os principais alicerces de um RPG dentro de sua fórmula à luz da nova perspectiva, sobre a qual discorro melhor mais adiante.
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Inúmeras ameaças interrompem o caminho da dupla; a quantidade de registros no bestiário é enorme. Eis alguns que lembro de cabeça, por ser fã de mitologia nórdica e, assim, conseguir perpetuar nomes na memória – vários deles retratados da maneira original e legítima na aventura:
- Draugr, guerreiros que morreram e enfrentam Valquírias que revivem seus próprios cadáveres;
- Ancestrais de Pedra, que vivem em Midgard e tradicionalmente resguardam artefatos escondidos pelos deuses;
- Dentro dos Seidr temos os salteadores, seres corrompidos por magias;
- Os Lúgubres, que conjuram feitiços explosivos;
- Muitas feras: ogros, lobos, gigantes e um dragão irado, o Hraezlyr;
- Arqueiros, que lançam pentelhas bolas de fogo;
- Elfos, que se separam em escuros e luminosos – eles têm uma treta própria, mas as duas facções são suas inimigas;
- Trolls. Muitos trolls.
Basicamente, Cory Barlog (o diretor-criativo) e sua equipe criaram o maior lore possível de um God of War dentro de um ÚNICO jogo. A mitologia nórdica não é tão, digamos, “acessível” quanto a grega; lá nós temos os deuses celebridades, tão ilustrados em livros didáticos, histórias e filmes, que são os mencionados Zeus, Poseidon, Hércules, Afrodite, Hefesto, Helios, Hermes, Hades e tantos outros. Eles são objetos da disciplina de História Geral, que você teve lá no colégio ou no cursinho pré-vestibular.
Por outro lado, nem todos conhecem os Aesir, os Vanir, os reinos de Asgard, Midgard e Alfheim, os lobos gigantes Sköll e Hati, o gigante de gelo e pedra Hrungnir... Mas é claro que a maioria já ouviu falar em Thor, Odin e Baldur, só para citar alguns. A mitologia nórdica é mais “complexa”, por assim dizer – desde sua amplitude até os nomes difíceis de escrever e pronunciar. O novo God of War abraça esse novo mundo, que tem um lore incrível, riquíssimo e muito bem representado.
Gameplay e combate: evolução gritante
Dentro dessa fantasia vem aquele que talvez seja o ponto mais discutido de God of War: o gameplay. Abrir mão da câmera mais aérea e fixa para ter dado espaço a uma nova perspectiva certamente foi tema de discussão de inúmeras conversas nas salas de reunião dos estúdios Santa Monica: estava na hora de mudar.
Eu tenho certeza que designer X concordou com designer Y, que discordou de programador Z, que por sua vez apoiou o artista C. Pode ser um chute, pode ser verdade, mas um fato: God of War está diferente. A câmera se aproximou de Kratos, que se agigantou mais ainda na tela, e ganhou o famoso aspecto “over-the-shoulder”, isto é, sobre os ombros, livremente controlada por você e abertamente inspirada em Uncharted, The Last of Us, Dark Souls e uma bela pitada de Hellblade, inclusive por conta da estética nórdica que a jornada psicótica de Senua também incorpora.
Mudar ou não mudar? Essa decisão não é tomada com base em pétalas de margaridas, do “bem me quer, mal me quer”. É uma decisão corajosa. Manter o que já existia significa correr o risco de provocar os que anseiam por mudanças: “Bah, esse esquema velho já deu”. Mudança, por sua vez, também implica reclamação: “Bah, mudaram tudo, isso não é God of War”. É difícil. Eu prefiro traduzir a decisão de mudar com uma palavra: evolução.
O novo esquema não é apenas bonito e adaptado aos moldes de 2018: ele funciona dentro de tudo aquilo que God of War representa. Quando há enxames de inimigos ao seu redor – coisa que frequentemente acontece, lembrando que isso é God of War, correto –, a tela exibe sinalizadores que indicam a iminência de um golpe, dos lados, acima ou abaixo de Kratos.
Atreus, que atua como o bom escudeiro que Sancho Pança foi de Dom Quixote, também comunica ao mentor, aos berros, sobres os perigos em seus entornos. “Ataque à esquerda!”, exclama o garoto. “Magia, cuidado!”, alerta o rapaz nos confins dos reinos élficos de luz e escuridão. Atreus é um favor, não um fardo. Ao apertar quadrado, o garoto lança flechas que causam dano leve e distraem inimigos. O pupilo também aplica ataques físicos que se combinam aos golpes de Kratos. Pai e filho têm boa química na hora de descer o sarrafo e nos puzzles também. E sim, há enigmas cabeludos na equação – não tão engenhosos quanto o alinhamento do Templo de Pandora do primeiro God of War, elaborado pelo brilhante arquiteto Pathos Verdes III, mas muito criativos para se resolver em dupla.
Kratos tem vontade de matar e faz isso de maneira mais poética e inteligente, muito menos descerebrada
Kratos tem peso. Muito mais peso. Ele está duro, mas não é uma bola de ferro; é um brutamontes em forma. Ele descarrega seu machado sobre os inimigos com a mesma vontade que um lenhador tem quando empunha a arma ao despedaçar seus troncos, sempre aos berros de um halterofilista que emite sons ao erguer ferros pesados na academia e afrontar os próprios limites.
Kratos tem vontade de matar e faz isso de maneira mais poética, muito menos descerebrada. O esmagar de botões continua ali, só que agora foi transferido para o R1 e o R2 e ganhou um toque de estratégia. Há mais cérebro e inteligência sem que o DNA da franquia seja perdido. Existem diversas combinações que misturam o machado, as flechas de Atreus, os punhos de Kratos, o escudo e mais – além de uma boa dose de Dark Souls em alguns duelos mano a mano.
Embutidas nessa nova mecânica estão as runas, que exercem um papel elementar. Basicamente, elas compõem a magia do jogo. É possível encaixar essas pedras mágicas em armas e equipamentos para que estes possam imbuir novos poderes e invocar criaturas aladas – o machado de Kratos, por exemplo, assim como as Blades of Chaos dos God of War anteriores, vai até o nível 5. Isso acontece de forma lenta, mas sempre progressiva. A customização, aliás, é outro ponto alto da evolução.
Customização atualizada para 2018
Uma das críticas dos títulos que antecederam o novo God of War se dava no sistema de customização. Em suma, ele não existia. O que havia era um upgrade básico das armas de Kratos, sejam elas as espadas, as manoplas especiais de Hércules ou as garras de Hades. A prática se resumia a acumular sangue de inimigos e trocar por upgrades.
Agora, há todo um ecossistema inédito na receita, com direito a itens separados por cor de raridade, tal qual ocorre em Shadow of Mordor/War, Destiny, The Division e outros. Os mencionados irmãos anões Brok e Sindri (que têm uma rivalidade gostosa de ego enquanto ferreiros) podem forjar pedras rúnicas, confeccionar novos equipamentos, aprimorar os existentes, comprar artefatos que Kratos coleta durante a jornada e até mesmo vender Pedras da Ressurreição, que servem para Atreus reviver o pai e são gastas após o uso. Dica: não morra. Esses itens são caros.
A árvore de habilidades se ramifica em diversas categorias: você pode fazer upgrades no machado, nos punhos de Kratos, no escudo, nos ataques à distância (que servem ao seu machado lançado como bumerangue e ao arco e flecha de Atreus) e no modo Fúria Espartana, acionado com o L3 + R3, em que o espartano vira um boxeador melhor e mais rápido que o Mike Tyson para aplicar socos rápidos e letais em inimigos. Isso é God of War.
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Transição de visual: arte
Outro desafio que a equipe de Santa Monica precisou encarar na nova aventura foi aplicar toda a estética nórdica a uma franquia que, até então, nadava em rios gregos. Típicos do norte europeu, os cenários de God of War intercalam trechos montanhosos, cobertos por neve, monólitos e rochedos pitorescos, com florestas adornadas por grupos de árvores pintadas por cores que remetem a todas as estações do ano, em tons de rosa, azul-turquesa ou verde-musgo, você escolhe.
Os orvalhos parecem borrifar o ar com um cheiro de mato fresco, em dias que só não são mais belos por causa da sanguinolência resultante das guerras entre os deuses e as criaturas que ali habitam. Por falar em violência, o tom visceral diminuiu um pouco aqui, mas já chego a esse ponto.
No PS4 Pro, em que desfrutei de God of War, há os dois modos gráficos já tradicionais: o modo que prioriza resolução, renderizando o jogo em 2160p com checkerboard e supersampling em telas que não sejam 4K (não há 4K nativo aqui, convém ressaltar); e o modo que privilegia a performance, otimizando a taxa de quadros por segundo e mantendo a resolução em 1080p.
Violência em tom menor
Outra marca registrada da franquia, para quem jogou e platinou todos (meu caso), é o timbre visceral. Aqui, a entonação diminuiu esse calor. O machado de Kratos é multiuso: serve para abrir portas, resolver enigmas e decapitar inimigos. Mas essa decapitação não acontece do jeito que você imagina.
As finalizações, por exemplo, que acontecem quando um inimigo está enfraquecido e vulnerável ao agarrão de Kratos, continuam cinematográficas, mas sem a mesma brutalidade. As cabeças não são arrancadas; elas explodem como bola de fogo ou cristais de gelo. Parecem bexigas d’água que estouram com um pisão. São animações de encher os olhos, mas você vai sentir uma “leveza” imediata igual à que eu senti se for seguidor de longa data da franquia. Depois que você jogar, peço a quem quiser que deixe comentários aqui embaixo para trocarmos ideias sobre isso.
Na hora de descer o sarrafo, não há como ter 'delicadezas' com os inimigos – oras, eles te atacam com brutalidade num mundo violento de deuses sanguinários e querem o quê?
Mas eu senti, sim, falta da brutalidade de outrora. Poxa, Kratos arrancou a cabeça de Helios com as mãos livres em God of War 3. Foi puxando o crânio pela mandíbula igual a um elástico enquanto o enviado de Zeus gritava de dor. Depois, arrancou a perna de Hermes enquanto este, manco, jorrava sangue por uma sala e proferia os últimos insultos a Kratos. As batalhas sobre o pégaso em God of War 2 mostravam o espartano dilacerando mortos-vivos enquanto enfincava a lança deles no corpo das outras criaturas voadoras. No primeiro jogo da série, logo no barco, Kratos extirpava os braços de seus oponentes e usava o osso pontudo dos membros arrancados nas próprias criaturas. Era devastador.
Há que se entender, em contrapartida, que temos um Kratos humanizado na aventura, um pai diante de seu filho, um mentor perante seu pupilo. Mas é preciso reconhecer, por outro lado, que na hora de descer o sarrafo não há como ter “delicadezas” com os inimigos – oras, eles te atacam com brutalidade num mundo violento de deuses sanguinários e querem o quê? O único troco possível é a treta devastadora, agressiva e selvagem, não há outra opção. Kratos não era visceral nos outros porque ele queria; ele faz o que faz para se livrar de seus obstáculos. “A tarefa requer concentração. Não faço porque gosto, faço porque devo”, diz Kratos a seu filho. O brutamontes está tão humanizado que cria em nós aquela expectativa do Kratos antigo a todo momento. “Qualquer hora ele vai soltar o Kraken que existe dentro dele”, eu pensava.
As animações das barbáries que Kratos comete diminuíram esse tom, que é um dos pilares do legado da série. Apesar de eu, particularmente, ter sentido falta da visceralidade dos anteriores, não se engane: o machado de Kratos faz estragos hediondos. As atrocidades do espartano continuam crocantes, só que menos gritantes. Talvez mais... Elegantes. Para bem ou para mal, decerto são o encaixe da nova proposta que o jogo apresenta à franquia. Ainda assim, fica registrado aquele que talvez seja meu único ponto negativo da jornada – e o efeito pode ser diferente com você, como sempre gosto de frisar.
Um futuro promissor
Por tudo que God of War representa, a nova entrada de uma das principais franquias da família PlayStation não é um hype gratuito: é simplesmente um produto polido com esmero nos mínimos detalhes e lotado de conteúdo. Tudo foi pensado com carinho, cuidado e respeito ao legado da série.
Fiquei feliz ao saber que Cory Barlog ocuparia a direção criativa. Lá no passado, após a saída de David Jaffe, criador do jogo, Barlog assumiu as rédeas em God of War 2 (particularmente meu favorito) e também dirigiu parcialmente God of War 3. Ele chegou a deixar os estúdios de Santa Monica para se envolver em outros projetos (incluindo Mad Max e o reboot de Tomb Raider, lançado em 2013), mas foi chamado de volta para conduzir o novo God of War.
Um jogo que sabe se reinventar sem ser forçado, dentro de uma proposta que atende aos veteranos e é absolutamente convidativa a novatos na franquia – sim, você aí que está lendo esta análise e nunca jogou nenhum God of War vai se sentir bem-vindo! Aliás, a dublagem brasileira está de parabéns. Ricardo Juarez volta a dar voz a Kratos em brilhante atuação junto ao talentoso elenco de dubladores.
Evolução requer mudanças. Se tudo é mantido, reclamam. Se as coisas mudam, reclamam. Essa é a graça do mundo, da vida e da democracia, especialmente no entretenimento – os produtos não são imutáveis; eles precisam de uma tecla F5. A destreza está em saber fazer isso sem largar o DNA que foi a gênese de tudo.
É penoso agradar gregos e troianos. É por isso que estou ansioso para que todos vocês joguem e compartilhem suas opiniões comigo aqui embaixo. Cada pontada da narrativa vai gerar uma fisgada diferente no seu sentimento iniciado lá atrás, em 2005; cada confronto com um chefão épico, cuja escala é maior que a tela da sua TV – tenha ela o tamanho que tiver –, vai ficar eternamente gravado em sua memória.
Embora a selvageria esteja ligeiramente mais controlada e as andanças do espartano e de Atreus se estiquem um pouco em alguns momentos, esses trechos amplificam a relação entre os dois, humanizam um calejado Kratos – que de cansado não tem nada, só ressaltando – e criam uma brilhante narrativa, escrita com diálogos inteligentes, cheios de referências e entrelinhas ao passado, magnéticos aos fãs. O próprio Barlog é coescritor do jogo, aliás.
God of War é a reinvenção que a série implorava para raiar. E ninguém vai implorar para você comprar; eu apenas humildemente recomendo que você jogue. O futuro da série nunca viu um alvorecer tão bonito. God of War está para o PlayStation assim como Halo está para Xbox e Mario para Nintendo.
Todo jogador que se preze, independentemente da plataforma, merece essa experiência.
Categorias
- Kratos e Atreus têm química em qualquer contexto
- Narrativa madura, bem escrita, pensada com respeito à mitologia nórdica e bem inserida na ficção de Kratos
- O gameplay se transformou para os moldes de 2018 sem se esquecer do legado da franquia
- Kratos humanizado, mais frio e racional, movido por motivações diferentes
- Mais RPG: customização profunda de armas e equipamentos com direito a itens separados por cor de raridade, atributos específicos, habilidades rúnicas e mais
- Lotado de conteúdo: tarefas opcionais, colecionáveis e desafios extras compõem mais de 40 horas de jogo com tranquilidade
- Dificuldade adaptável e disponível a todos os gostos – “Quero God of War”, por exemplo, divide os fracos e os fortes
- Brilhante direção de arte
- Os novos personagens que rodeiam Kratos convencem e justificam sua existência
- Menos visceral que os anteriores, o que seria normal diante de um Kratos mais humanizado e de um tom diferente da franquia. Mas a brutalidade elevada em nível máximo fez falta
- Algumas andanças de Kratos e Atreus podem amornar um pouco o ritmo em trechos muito pontuais – graças aos deuses, esses momentos são breves. Devemos nos lembrar de que um hack'n'slash, mesmo que evoluído e voltado a uma pegada diferente, é regularmente frenético
Nota do Voxel