A importância de saber mudar sem perder a essência
É curioso refletir sobre a franquia Far Cry. Eu digo isso não porque o primeiro game foi um primor técnico concebido pela Crytek antes de a série passar completamente para as mãos da Ubisoft nem porque a proposta enfrentou mudanças (boas e ruins) ao longo do tempo, mas sim porque ela consegue mudar sem alterar, mexer sem se perder, ousar sem exagerar.
Sempre há um limite a ser respeitado dentro de uma proposta já estabelecida. Queimar essa linha significa assumir riscos. Por outro lado, manter tudo o que estiver dentro dela intacto pode representar falta de ideias, mesmice. Temos Far Cry, Far Cry 2, Far Cry 3 e Far Cry 4. No entanto, pela primeira vez, temos um subtítulo que sugere os ventos da mudança: Far Cry Primal.
Quem estava sentindo saudades da saga não precisou esperar muito tempo. A Ubisoft, seguindo sua cartilha periódica de lançamentos, trouxe Far Cry Primal, a nova entrada da franquia, apenas um ano e três meses após o lançamento do quarto game, que apresentou qualidade, mas já mostrou sinais de desgaste.
Muitos clamaram que Far Cry 4 foi um “Far Cry 3,5”, e isso não era ruim, de jeito nenhum. Oras, Far Cry 3 foi sensacional por vários méritos: Vaas Montenegro, milhares de animais para matar, um sistema de crafting robusto, um visual paradisíaco de dar a inveja a habitantes de Angra dos Reis, a definição de insanidade. Far Cry 3 fez o favor de ser tudo aquilo que o antecessor não tinha sido. Não me levem a mal: eu gostei de Far Cry 2, apesar de o parque de diversões dali, em plena savana africana, ser vazio e repetitivo.
E aí, em 2014, veio Far Cry 4, já fomentado por altas expectativas em função da qualidade acima da média do terceiro game. Conforme mencionado, a aventura de Ajay Ghale, temperada pelo sadismo de Pagan Min, foi ótima, mas muito presa ao seu antecessor. A Ubisoft sentiu que era conveniente aplicar mudanças estruturais. Na verdade, era inevitável.
Revitalização: sempre bem-vinda
Ciente da necessária revitalização que a série estava pedindo, a entrosada Ubisoft Montreal, que também cuidou de Far Cry 3 e Far Cry 4, resolveu tirar as armas de fogo das mãos dos jogadores e apresentar uma proposta diferente: a Idade da Pedra – respeitando, é claro, a essência da franquia.
10.000 a.C., uma era em que o mundo estava a um passo da civilização, um período histórico no qual o fogo nascia das pedras e quado o Homo sapiens mal sabia ordenar frases coerentes, conversando por gestos, berros e palavras de um dialeto próprio. Substitua as metralhadoras e explosões por lanças, tacapes, flechas e animais que lutam a seu favor. Some a isso uma ambientação maravilhosa, com fauna e flora incríveis, desenvolvidas para a nova geração, sem essa de plataformas cruzadas. Nada de capar qualidade para conseguir alcançar o PlayStation 3 e o Xbox 360. Aqui, os cenários são vastos e espontâneos, e a natureza se comporta de maneira natural – muitas vezes conforme as suas ações.
Troque o conceito de “shooter” por “sobrevivência”, empunhe seu instinto e seja bem-vindo a um Far Cry na pré-história, capaz de ser diferente por ousar algo diferente, mas sem perder o espírito da série. Adicionar tempero a uma fórmula já estabelecida é arriscado, mas, quando a fornada sai com os ingredientes certos, o resultado é certeiro.
Troca o conceito de shooter por sobrevivência, na prática, funciona?
O sentimento de respirar novidade é o aspecto mais notável de Far Cry Primal. Logo de cara, você se esquece, ao menos por um longo intervalo, de que está jogando um Far Cry. Em seguida, um elemento em comum faz lembrar as características que consagraram a série: exploração, atmosfera do mundo aberto e quantidade de atividades para fazer.
O tempero pré-histórico dá um tom diferente a tudo o que conhecíamos sobre a série. Ambientado no ano de 10.000 antes de Cristo, Primal, como o próprio nome sugere, retrata o período mesolítico, em que o mundo estava a um passo da civilização, e coloca os jogadores no fictício Vale de Oros, localizado na Europa Central, em um mundo aberto enorme, repleto de mamutes, lobos-brancos, tigres-dentes-de-sabre e inúmeros outros animais catalogados nas enciclopédias de história.
Você é Takkar, membro da tribo Wenja, um homem deixado à própria sorte quando seu grupo é atacado por um bando dos Udam, outra tribo que coexiste no hostil mundo de jogo. Cada clã tem seu próprio linguajar: a Ubisoft construiu dialetos fictícios rigorosos, que seguem uma estrutura sintática própria baseada na língua protoindo-europeia. O trabalho de pesquisa da equipe de desenvolvimento foi primoroso.
É por isso que Far Cry Primal deve ser visto de maneira diferente em comparação aos outros títulos da série. Não há um shooter aqui, e sim um jogo de sobrevivência, com todos os fatores que o gênero envolve: confecção de armas, uso dos elementos da natureza, racionamento de itens e, sobretudo, a necessidade de seguir o instinto.
Idade da Pedra: um tema bem-vindo e pouco explorado
A reprodução do período histórico retratado em Far Cry Primal é fantástica. Até agora, em absolutamente todos os jogos da franquia, o arsenal de armas de fogo sempre foi uma característica explorada a esmo. Os upgrades e as árvores de habilidades sempre canalizavam em atributos que, de alguma forma, melhoravam seu manuseio com metralhadoras, pistolas, bazucas, snipers, granadas e afins.
Na nova jornada, tudo isso vira de ponta-cabeça. Você é desprovido dessas armas, de carros, celulares, sinalizadores e outras modernidades típicas dos shooters atuais. Aqui, a ideia de “Welcome to the Jungle”, promulgada mundialmente por Guns N’ Roses em 1987, é real. Sem firulas, sem rodeios, sem massagem: se vire com os recursos ao seu redor.
Atualmente, a indústria de video games explora muito as ambientações modernas e todos os recursos que elas trazem (supracitados acima), mas poucos ousam adentrar universos desconhecidos, que exigem um denso embasamento histórico. Se pararmos para refletir, que games pegam emprestados os cenários de Far Cry Primal? Poucos. Dá para lembrar, lá na fagulha da memória, de nomes como Turok, os jogos (toscos, infelizmente) baseados em Jurassic Park ou até mesmo Dino Crisis, entre um ou outro perdido por aí. Há uma pequena onda de “dinossauros” a caminho: No Man’s Sky, Horizon: Zero Dawn...
Os eventos de Far Cry Primal já estão muito além desse período e se passam num momento em que o mundo está a um passo da civilização. O game é competente em transmitir todo esse espírito pouco explorado de anos para cá.
Uma pitada de Dying Light, Mad Max e Ark
Substitua todas as carcaças contemporâneas por arco e flecha, tacapes, lanças, pedras e animais quase jurássicos, mais ou menos na linha de Ark: Survival Evolved. O sentimento de respirar novos ares é muito bem-vindo desde o começo. Em Far Cry Primal, o seu senso de sobrevivência será muito mais gritante do que sua habilidade na precisão da mira.
É preciso encontrar os materiais para confeccionar tudo: flechas exigem madeira criada a partir da extração de tocos de árvore; lanças podem exigir amianto, encontrado em formações rochosas; fogo exige gordura de animal, e por aí vai. Há um leque de opções no inventário. Você pode ver o que dá para fazer com o que tem, inclusive desenvolver novas habilidades, assim como nos games anteriores.
Agora, a confecção de armas não é um capricho, e sim uma necessidade. O estoque acabou? Explore e encontre mais materiais. E todos os seus instrumentos pré-históricos ganham melhorias com o tempo. Conforme desbrava o mundo de Oros, você acende piras, libera mais áreas e, assim, conhece outros membros, que vão agir conforme o seu comportamento.
Lembra da sua casa em Far Cry 4? Um lugar que poderia ganhar upgrades e reformas que ajudavam o jogador? O conceito foi explorado superficialmente na aventura de Ajay Ghale, mas, em Far Cry Primal, Takkar pode fazer isso de forma um pouco mais significativa, ainda que simplória. É possível aperfeiçoar as ocas de amigos que o protagonista conhece ao longo da trama. É como se você aprimorasse o forte de seus aliados, num sistema também adotado em Mad Max.
A pancadaria, por sua vez, lembra a pegada de Dying Light. Como você não tem armas de fogo, os instrumentos de mão são importantes ferramentas no combate. Ainda dá para disparar lanças e flechas, mas descer o sarrafo no braço é muito mais legal. Tanto que, agora, você pode segurar o R2 para carregar um golpe e aplicá-lo com mais força, anulando a guarda do inimigo e incidindo mais dano. Genial.
Mudanças necessárias
Mudanças não faltam em Far Cry Primal. Desde o começo, é visível a tentativa da Ubisoft de trazer uma proposta diferente, que respeite as raízes da franquia, mas traga novos temperos a uma fórmula que vinha se desgastando.
Sem veículos para acelerar o deslocamento do jogador, o mapa deve ser desbravado a pé, algo que reforça o conceito de sobrevivência e faz o jogador vivenciar a atmosfera da Idade da Pedra. As viagens rápidas podem ser desbloqueadas ao acender piras, estrategicamente espalhadas pelo mapa, e ao dominar bases de tribos inimigas, que são tão agressivas quanto os animais selvagens.
Ao mesmo tempo em que é realista, Far Cry Primal consegue agradar os mais descompromissados. Dominar essas bases sem uso de armas de fogo é simplesmente revigorante. São momentos que conseguem manter a pegada arcade da franquia, ainda que isso possa dar margem para a repetição.
Os animais, por exemplo, não são apenas fontes de suprimentos. Eles são verdadeiros aliados: agora, é possível domá-los para que eles se transformem em fiéis escudeiros. O multiplayer de Far Cry 4 já beliscou essa mecânica, mas Primal tratou de ajustá-la por completo.
Desta vez, naturalmente, não há um binóculo para marcar inimigos. Porém, ao apertar para cima no D-Pad, Takkar tem o auxílio da coruja, controlada por você. É ela que, genialmente, sinaliza a localização das ameaças ao fazer uma vista aérea da região.
O mundo é liberado conforme você o explora. Não há uma obrigatoriedade em subir até o topo de uma torre ou montanha qualquer para abrir uma determinada região. É preciso divagar pelo mapa cuidadosamente, conhecer membros de tribos, ganhar missões exclusivas aprimorando ocas, encontrar novas bases do clã inimigo Udam a pé, confeccionar armas para poder adentrar áreas mais perigosas. Acima de tudo, é necessário sobreviver antes de pensar em atirar suas flechas em qualquer coisa que se move. É esse senso de sobrevivência que dá o tom de Far Cry Primal.
Ótima opção para safra de início de ano
O maior desafio da atual indústria de video games é sair da mesmice. Quando uma franquia estabelece paradigmas, ela precisa saber se reinventar para sobreviver num mercado lotado de opções, e isso nunca é fácil. Far Cry Primal consegue atingir esse ponto de maturidade.
É importante adotar uma certa cautela para encarar a nova proposta da Ubisoft. Muitos podem confundi-la e compará-la exaustivamente com os games anteriores, mesmo que existam mudanças. A atitude em alterar uma fórmula que mostra sinais de desgaste é ousada, mas nem sempre acertada. Só que, aqui, a Ubi atingiu em cheio. Far Cry Primal é diferente de Far Cry 1, 2, 3 e 4, mas não perde a essência. Até mesmo a eventual repetição de atividades, por mais que elas sejam variadas, está ali. Não é a história, pouco atraente, que fará você avançar: é todo o mundo mesolítico e as coisas que estão ali dentro.
Tirar o arsenal de armas de fogo da mão do jogador e arremessá-lo na Idade da Pedra foi, ao mesmo tempo, genial e paradoxal, considerando os alicerces da franquia. O ponto alto fica justamente por conta dessa ousadia. É deliciosa a sensação de jogar algo com cara nova, que às vezes nem faz você lembrar que é Far Cry. Depois, é muito legal lembrar que, bem, se trata de Far Cry – o que é ótimo. E pode reservar aí umas 25 horas para as missões principais ou, facilmente, mais de 40 se você quiser fazer as atividades opcionais e buscar os colecionáveis.
Far Cry Primal sabe mesclar tudo de bom que há na franquia e, ao mesmo tempo, consegue trazer novos ares a uma fórmula que mostrava sinais de desgaste. O título foi lançado num momento estratégico, em plena época de entressafra, quando há poucos lançamentos de peso no mercado – e nada parecido no mesmo estilo. Havendo ou não outras opções, o brilho de Far Cry Primal seria o mesmo. Como diria Guns N’Roses: bem-vindo à selva.
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- A Idade da Pedra é uma ambientação fantástica
- Exploração à moda antiga, com necessidade de busca por recursos e senso de sobrevivência
- Visual lindo regado a uma rigorosa direção artística
- Inúmeras atividades para fazer e mundo enorme para ser desbravado
- Fauna e flora ricas, com imensa variedade de animais, vegetação e outros elementos da natureza
- É diferente, mas é Far Cry
- História pouco atraente
- As atividades são variadas, mas, após algum tempo, podem dar margem para a repetição
Nota do Voxel