Sem tempo para ir ao zoológico? Então deslumbre esse lindo safári
Dar tempo ao tempo. Essa é uma informação que jamais deve ser preterida por nenhuma publisher. Um intervalo maior de tempo é saudável na medida em que permite mais polimento à versão final de qualquer produto de entretenimento, seja um filme, uma peça de teatro, um roteiro de quadrinhos e, é claro, um jogo.
Para bem ou para mal, a filosofia se aplica a Far Cry 4, uma das sequências mais aguardadas da temporada. O título carrega um peso extra para a Ubisoft: as ligeiras turbulências que a produtora enfrentou em alguns momentos do ano, com trepidações em Watch Dogs e Assassin’s Creed Unity, e trunfos em títulos “menores” como Child of Light e Valiant Hearts – gratas surpresas à indústria justamente pela simplicidade e pela magia da proposta.
Mas Far Cry 4 vem especialmente pressionado pelo seguinte fator: a qualidade suprema de Far Cry 3. Colocar a “definição de insanidade” de Vaas Montenegro ao lado da “região promissora” prometida por Pagan Min em Kyrat, meus irmãos e minhas irmãs, é uma tarefa para desenvolvedor rebolar. E quando a receita envolve uma pitada de Just Cause com um tempero a gosto de todas as coisas boas dos outros Far Cry, a tendência é que o resultado seja promissor.
A complicada equação que a Ubisoft tinha em mãos era a seguinte: o primeiro Far Cry (dos bons tempos da Crytek) foi incrível. O game trouxe uma excelente narrativa aliada a mecânicas robustas de mundo aberto – ainda que limitadas à época, em 2004 – e foi um marco para a indústria. O segundo foi ótimo na intenção, mas razoável na execução. A ambição de colocar o jogador nas savanas africanas em Far Cry 2 foi válida, mas o enorme mundo aberto era vazio e com tarefas repetitivas. Então, Far Cry 3 chegou cercado de desconfiança, e aí surpreendeu – justamente por pegar a ideia com potencial do 2 e aproveitá-la bem.
Após essa soma, Far Cry 4 chega num terreno cheio de lombadas para a Ubisoft, que vem desempenhando um grande trabalho no Brasil. Senhoras e senhores, não precisam ter medo: sejam bem-vindos a Kyrat. A vista por aqui é muito privilegiada, cheia de regiões montanhosas e um céu lindo, tão azul quanto o mar.
Exploração vertical
Far Cry 4 novamente coloca os jogadores em um cenário paradisíaco cheio de perigos vindos de humanos e da natureza. A fauna e a flora utilizam a base estabelecida em Far Cry 3 e estão igualmente lindas, principalmente com o poder da nova geração. Kyrat é uma fictícia e audaciosa região das montanhas do Himalaia, em que o jovem Ajay Ghale deve enfrentar o regime autoritário de Pagan Min.
Apesar das comparações com Far Cry 3 serem inevitáveis, Far Cry 4 traz propostas valiosas em cima das bases estabelecidas por seu antecessor. Agora, a equipe da Ubisoft Montreal resolveu deixar a exploração muito mais vertical graças ao eficiente uso do arpéu, ferramenta adquirida no começo do jogo e que brinca com algumas das mecânicas consagradas por Just Cause.
Como a região de Kyrat contém trechos mais montanhosos do que as superfícies relativamente planas de Far Cry 3 – que sim, também colocava morros à frente do jogador e tigres nas moitas à espreita –, o gancho traz uma perspectiva interessante para fazer diferentes abordagens nos postos de inimigos, se aproximar de animais, salvar reféns e mais.
É arpéu, não arpão!
A utilização do acessório foi estrategicamente pensada para a mudança na proposta da exploração. É como se a própria equipe identificasse as gigantescas semelhanças com Far Cry 3 e, ciente das comparações inevitáveis, trouxe o arpéu com o claro propósito de dar um ar diferente à forma como o mundo de jogo é explorado.
Postos de inimigos, cachoeiras e outras regiões rochosas dão o indicativo de que o jogador pode utilizar a ferramenta por meio de linhas amarelas que, de longe, parecem miragem, mas, de perto, são um alívio para você adotar uma abordagem à la Rambo.
É exatamente nesse ponto que mora o trunfo de Far Cry 4: o sentimento de diferença ao jogá-lo. Alguns por aí – eu inclusive, admito – acusavam o jogo de ser um “Far Cry 3.5”, e não que isso fosse ruim, longe disso; a evolução, no entanto, é sempre necessária, respeitando, é claro, as bases estabelecidas pelo antecessor. Mordi a língua: Far Cry 4 transfere muito mais fluidez do que o terceiro jogo e é distinto em vários aspectos. Não se deixe enganar por vídeos ou imagens: jogar Far Cry 4 é bem diferente do que assistir a Far Cry 4. Os personagens, por outro lado, correm o risco de cair no esquecimento.
Trama densa, mas não necessariamente fantástica
Se por um lado Far Cry 3 prendeu os jogadores na cadeira do começo ao fim, Far Cry 4 pode exigir algum tempo até engrenar. Eu digo, vejam só: o 3 tem aquela pegada de filme adolescente, de Tela Quente que presta e que tira o fôlego. Pois a história é simples: um grupo de moleques mimados salta de paraquedas, erra o destino de pouso e cai numa ilha cheia de loucos, sendo capturados por Vaas Montenegro e logo enjaulados em cativeiro. Objetivo? Fugir dali. E Jason, o protagonista, está mais para aprendiz do Roberto Justus do que para um aspirante a Rambo. É um zé-ninguém que precisa salvar os amigos e fugir daquele hospício ao ar livre.
Caramba! Isso é unir a essência do fútil e do descerebrado com a inteligência e as boas sacadas do suspense envolvente, que deixa o jogador curioso para saber como o grupo vai escapar dali, já que todas as comunicações foram cortadas. E essa foi a sacada da Ubisoft para atrair multidões, as mesmas que vão jogar Far Cry 4.
Agora, o game ganhou uma trama mais densa, com todo um contexto prévio entre Ajay Ghale e Pagan Min, o tirano que governa Kyrat. Ghale não está ali por acidente: o rapaz foi levar as cinzas da mãe morta a um santuário sagrado naquilo que parece ser um ritual místico (e que até existe na vida real, diga-se). Perdido e longe de casa, o jovem se vê obrigado a cruzar as montanhas do local para alcançar seu objetivo e descobrir os segredos obscuros que provocam a sangrenta guerra entre o Exército Real, comandando por Pagan Min, e o Caminho Dourado, movimento que representa os grupos de rebeldes contra o regime.
O problema é que o vilão, responsável por carregar nas costas o peso de ter uma personalidade marcante, destoa de praticamente todos os outros personagens. Eles sofrem da “síndrome não carismática” e dificilmente serão memoráveis, inclusive o próprio Ajay Ghale. Mas esse, é claro, foi o meu envolvimento pessoal com o jogo, e pode ser que os seus sentimentos sejam diferentes. A dublagem, por sua vez, merece aplausos, principalmente a de Pagan Min. E os animais estão ali para compensar a farra.
Memória de elefante não falha
Sem fugir da cartilha que consagrou a série, Far Cry 4 traz novamente um imenso mundo aberto com milhares de tarefas a serem realizadas. E esse talvez seja o elemento mais importante para prender o jogador na cadeira por horas a fio: a variedade de missões a serem realizadas e a exploração. É aqui que sua experiência de jogo será gratificante, não necessariamente na história, mais densa e menos empolgante, ou na falta de carisma dos personagens.
Nada disso ofusca o que existe de melhor no título: a imensidão de coisas diferentes para fazer. A fauna e a flora de Far Cry 4 esbanjam criatividade. O número pode não ser muito maior, mas a seleção traz espécies exóticas que vão deixar o dragão de komodo morrendo de inveja. Animais como tigre-bengala, lobo, tapir, macaco, peixe-demônio e o icônico elefante marcam território e podem ser usados contra ou a favor do jogador. Mas não se engane, há muito mais do que isso. Sem falar nos inimigos inéditos: o Caçador é um dos piores e pode se comunicar com a natureza para que ela vire sua inimiga. Não adianta usar iscas para atrair animais aqui – outra mecânica nova muito bem-vinda.
A inteligência artificial foi consideravelmente aprimorada e jamais repete os movimentos de um animal de forma previsível; é comum ser atacado aleatoriamente por alguma espécie que se sinta ameaçada só com a sua aproximação. Portanto, é estratégico adotar uma abordagem em stealth se você dedicar o seu tempo especialmente à caça. O uso do arco e flecha continua sendo providencial para isso e ainda dá o dobro de recompensa por uma morte limpa.
Piloto, bota no automático para eu conseguir atirar melhor!
Outras mecânicas bem-vindas foram implementadas no jogo para dar mais dinamismo à exploração. Agora, os veículos têm um modo automático que pode ser acionado com o analógico esquerdo e permite que eles sigam a trilha da estrada numa velocidade contínua, dando espaço para que o jogador tenha mais liberdade na hora de atirar enquanto o veículo é conduzido. Durante essas andanças, é comum que apareçam os eventos de karma, outra novidade na franquia. São missões opcionais que surgem aleatoriamente e dão pontos de upgrade ao jogador. A árvore de habilidades está ali, intacta, esperando seus pontos de XP.
Os tiroteios continuam bebendo das melhores fórmulas de shooters e importam as bases estabelecidas nos primeiros jogos da franquia, principalmente Far Cry 2 e 3. O arsenal e o equipamento de Ajay podem ser aprimorados com peles de animais, plantas e outros itens. O elefante é uma das melhores armas para invadir postos dominados por inimigos. Imponente, o animal requer muitas balas para ser derrubado e certamente vai te ajudar em diversos momentos.
Os veículos também podem te tirar de situações arriscadas. Além dos carros e minibugs, há modelos diferentes, como os mini-helicópteros, que podem ser pilotados com facilidade e permitem uma abordagem privilegiada a algumas bases do enorme mapa.
Outra carta na manga da Ubisoft foi a opção pelo modo cooperativo, em que a campanha pode ser desbravada junto a um amigo. O multiplayer, aliás, traz modos para todos os gostos: domínio de postos, máscaras demoníacas ou mata-matas são apenas algumas das partidas que podem ser disputadas em mapas de cinco contra cinco. Segura, a desenvolvedora está dedicando toda a sua banda aos servidores de Far Cry 4, sem poupar esforços, e as rodadas estão absolutamente estáveis até aqui.
Depois da tempestade vem a calmaria
Após um período turbulento neste ano, a Ubisoft fecha 2014 com uma grande sequência que em nada vai decepcionar a comunidade. Sempre existe tempo para redenção, e ela veio. A nós, brasileiros, o tempero é especial, pois a dublagem em português está muito competente.
Ainda que Pagan Min seja um bom vilão, você dificilmente vai se apegar à causa de Ajay Ghale e pode ficar com uma leve impressão de que a história é só um pretexto para te botar no mundo de jogo. Mas não se engane: esse mundo é lindo e cheio de coisas diferentes para fazer. As missões variadas e divertidas têm fôlego suficiente para sobrepor a falta de carisma de alguns personagens e a história mediana.
Far Cry 4 mostra uma franquia em ascensão e seguramente traz uma reflexão: será que não é arriscado tornar uma série anual? Afinal de contas, houve um intervalo de dois anos entre Far Cry 3 e Far Cry 4, e o resultado final ganhou um altíssimo valor de produção que é convertido em muita diversão. Que essa filosofia continue, pois um intervalo maior de tempo é sempre saudável para qualquer franquia.
- Kyrat é um lugar lindo e com uma imensidão de coisas para fazer
- Pagan Min em um grande trabalho de dublagem (inclusive em português)
- Uso do arpéu dá outro ar à exploração, que está mais vertical
- Animais variados, exóticos e mais veículos
- Tecnicamente funcional, com poucos bugs e estabilidade no frame rate
- História mais densa, mas menos empolgante
- Personagens pouco carismáticos
Nota do Voxel