Um pós-apocalipse tipicamente britânico
Desenvolvido pelo estúdio Chinese Room, conhecido principalmente pelo trabalho realizado em Dear Esther, Everybody’s Gone to the Rapture é um game que deve gerar algumas polêmicas. A principal delas tem a ver com a questão de ele se encaixar ou não no que consideramos como um jogo eletrônico, levando em conta suas características pouco comuns.
Tal qual o título que consagrou a desenvolvedora, o lançamento exclusivo para PlayStation 4 deixa de lado a maior parte das interações que consideramos comuns em um game. Aqui, você simplesmente vai andar e interagir com alguns objetos, exercendo o papel de mero expectador de uma história que aconteceu em um período que nunca fica muito claro.
A experiência pode ser considerada única em alguns sentidos, mas o mero fato de ela se distinguir de outros produtos com características mais comerciais não a impede de merecer certas críticas. Intrigante em muitos momentos e tedioso em muitos outros, o jogo deixa impressões um tanto agridoces em quem se aventurar a dedicar as aproximadamente seis horas necessárias para terminá-lo.
Arrebatamento ou algo a mais?
Para entender o conceito por trás de Everybody’s Gone to the Rapture, é preciso entender um pouco do significado de “rapture” — que, em português, é um termo conhecido como “arrebatamento”. Conceito pertencente a alguns ramos da fé cristã, ele define o momento em que Jesus Cristo levaria os humanos que acreditam nele à Nova Jerusalém, deixando aqueles que não o aceitaram como salvador na Terra.
E é isso que parece ter acontecido no jogo da Chinese Room: na pele de uma figura não identificada, você chega a uma cidade do interior da Inglaterra que parece totalmente vazia. Carros estão abandonados nas ruas, casas estão abertas e há objetos jogados por toda a parte que indicam que as pessoas que estavam ali simplesmente sumiram de uma hora para outra.
O único sinal de vida que aparece no local é uma luz misteriosa que fica se movendo de um lado para o outro, servindo como uma espécie de guia para o jogador. Ao interagir com alguns pontos de interesse e certos objetos, você é confrontado por gravações e recriações de cenas que ocorreram anteriormente na região.
Realizar essas interações é essencial para descobrir qual a história por trás do game, que é seu ponto mais forte. A maneira como a Chinese Room construiu o roteiro força você a juntar aos poucos as peças de um quebra-cabeça maior, que não necessariamente está sendo montado na ordem correta.
Embora pareça confusa no momento, em pouco tempo a trama vai ficando mais clara e você se acostuma com os diferentes personagens que surgem em seu caminho. Para facilitar um pouco a compreensão, recomendo ligar as legendas (disponíveis em português, assim como o áudio) para se acostumar mais rapidamente aos diferentes protagonistas.
Um universo envolvente
Visto sob uma perspectiva técnica, Everybody’s Gone to the Rapture sem dúvidas é um dos games mais surpreendentes já lançados para a atual geração de consoles. Adotando uma filosofia de design que presa por uma aparência fiel à realidade, a Chinese Room conseguiu criar uma cidade que realmente parece existir.
Mesmo que o título apresente alguns problemas quando avaliado de forma mais detalhada, é difícil não se surpreender com a qualidade da vegetação utilizada, assim como chama atenção os efeitos de iluminação utilizados. Claro, há certos objetos que se repetem de maneira frequente, mas isso não é suficiente para distrair o jogador das belas visões que preenchem a televisão.
Também ajuda o fato de a trilha sonora contribuir para a criação de uma atmosfera que, se não chega a assustar, deixa claro que há algo bastante errado acontecendo na pequena cidade do interior. A ausência de músicas na maior parte do título contribui bastante para isso, e os desenvolvedores sabem o momento exato de inserir faixas condizentes com as cenas que você testemunha.
Os efeitos sonoros de telefones tocando e rádios e televisores com interferência também merecem destaque, ajudando tanto a guiar a exploração do jogador quanto a criar a ambientação necessária para o título funcionar. Para completar, é preciso elogiar o trabalho de dublagem e de interpretação dos atores que dão vozes aos personagens, embora haja alguns pequenos problemas de adaptação na versão brasileira — que, felizmente, são negligenciáveis.
Ritmo exageradamente lento
O principal problema de Everybody’s Gone to the Rapture, e motivo pelo qual muitos podem considerá-lo um mero “simulador de caminhada”, é a maneira lenta como seu personagem se locomove. Isso não seria exatamente ruim em um título com ambientes limitados, mas se torna um verdadeiro martírio em um título com ambientes abertos como esse.
Mesmo apertando o botão “R2” para se locomover mais rápido (possibilidade que o jogo nunca deixa claro existir), seu personagem ainda parece rastejar pelo chão. Isso se torna especialmente problemático devido ao fato de que desestimula a explorar caminhos secundários — algo bastante necessário para ter uma ideia completa da narrativa.
Confesso que, não fosse a necessidade de completar o game para a realização desta análise, o ritmo extremamente lento da movimentação teria me feito deixar Everybody’s Gone to the Rapture de lado. E o pior: não há nenhum motivo claro pelo qual a Chinese Room decidiu adotar essa restrição absurda à velocidade de movimento do jogador.
Não estou dizendo que o título deveria adotar um ritmo acelerado como aquele visto em títulos como Counter-Strike, mas sim que ele não deveria causar agonia nos jogadores. Poucas coisas são mais frustrantes do que caminhar alguns minutos em direção a um local para descobrir que não há nada de interessante por lá e que você vai ter que refazer o caminho de volta para “voltar ao rumo” do jogo.
Em um game que valoriza tanto sua narrativa, é um grande problema quando penso mais em como é chato chegar até determinado lugar do que fico ansioso em descobrir o que há por lá. Felizmente, a exploração extremamente lenta é recompensada na maior parte do tempo e não há necessidade de voltar a locais visitados anteriormente, mas quem deseja descobrir os segredos por trás do jogo ainda vai sofrer bastante nesse processo.
Em resumo: em um título que consiste basicamente em andar por um cenário, causa desconforto o fato de que esse processo ocorre em um ritmo extremamente lento. Caso a intenção da desenvolvedora fosse fazer com que isso aumentasse o envolvimento com o mundo criado por ela, a empresa falhou miseravelmente nesse sentido.
Experiência subjetiva
Falar sobre a validade de investir tempo e dinheiro em Everybody’s Gone to the Rapture é algo difícil. Seria mentira dizer que a Chinese Room não conseguiu atingir seu objetivo, que era contar uma história sob uma perspectiva não linear capaz de envolver o jogador e convencê-lo a prosseguir até o final para descobrir o que realmente aconteceu.
No entanto, a maneira como isso é feito está longe do ideal. Não consigo reforçar isso o bastante: em um jogo que se constitui basicamente na exploração de ambientes, é inconcebível que o estúdio realmente tenha pensado que era uma boa ideia tornar esse processo o mais lento e desconfortável possível.
Mesmo que dure somente aproximadamente seis horas, o título parece ter uma extensão muito maior devido ao ritmo da movimentação do protagonista. Em um universo aberto, é um grande erro você fazer o jogador pensar que não vale a pena chegar até o ponto mais longe do mapa, pois o deslocamento vai levar um tempo excessivo — e, provavelmente, não vai haver muitas distrações agradáveis no caminho.
Como narrativa, Everybody’s Gone to the Rapture é envolvente e bem-sucedido em construir um universo convincente e interessante. Pena que, como jogo, ele apresenta uma experiência limita que é muito prejudicada por um ritmo irritante e que em nada contribui para melhorar o envolvimento do jogador.
Categorias
- Narrativa não linear
- Gráficos lindos
- Trilha sonora envolvente
- Exploração extremamente lenta que prejudica muito a experiência
- O desempenho do jogo cai em alguns momentos, com travadas eventuais
Nota do Voxel