Detroit: Become Human é tocante, emotivo e tem trama extremamente ambiciosa
Se as máquinas se tornassem inteligentes e com raciocínio similar ao dos humanos, o que separaria elas de nós? Isaac Asimov já abordou o tema em “Eu, Robô” com as três Leis da Robótica, Philip K. Dick entrou no assunto em “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (e gerou o filme Blade Runner), a HBO abordou isso na releitura de "Westworld" e até "Ghost in the Shell" toca no assunto de um outro ponto de vista. Agora, David Cage, da Quantic Dream, se aventura no tema com Detroit: Become Human.
O novo game exclusivo de PlayStation 4 da Quantic Dream é praticamente um sucessor de Heavy Rain no assunto jogabilidade e nas escolhas, impressionando em múltiplos quesitos, seja na história bem amarrada, nos gráficos de cair o queixo ou na opção de retornar e refazer tudo diferente, moldando uma narrativa extremamente flexível às ações do jogador. Confira a nossa análise completa:
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Personagens e cenários muito bem trabalhados
Em Detroit: Become Human, seguimos a história de três androides diferentes no ano de 2038. Connor é um caçador de divergentes, androides que estão tomando consciência e agindo de maneira diferente da esperada, e que se torna parceiro de um policial que detesta máquinas; Kara é uma androide responsável por cuidar de Alice, uma garota que sofria abusos de seu pai drogado; e por fim temos Markus, o líder da insurgência das máquinas rebeldes.
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Durante a narrativa de mais de 15 horas, a Quantic Dream nos leva em uma jornada repleta de momentos memoráveis e dramáticos que nos fazem conectar com os personagens. Conectar de verdade. No que diz respeito aos protagonistas, todos têm uma história espetacular em diferentes aspectos. Kara mostra um lado humano e mais materno, Connor é calculista e completamente moldável aos atos do jogador e Marcus é recheado de dúvidas de moralidade que nos afeta durante a progressão.
Eu me senti impulsionado a proteger Alice com Kara, a dar voz e justiça aos androides com Markus e, ao mesmo tempo, caçá-los com Connor, descobrindo no caminho o que pensar sobre tudo isso. Aos poucos, a história de cada um se espalha como uma rede e se conecta, criando algo maior que se junta aos eventos globais.
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A desenvolvedora teve um cuidado bem grande em ambientar o game e criar um cenário coeso, que faça sentido. A própria escolha da cidade de Detroit já é interessante, pois o lugar enfrentou uma crise gigantesca no passado por conta da expansão da indústria automobilística. No game, essa crise volta na forma de androides tomando os empregos alheios, o que causa desconforto nas classes baixas.
Durante as cerca de 15 horas de campanha, é possível ver o cuidado nos detalhes e o capricho da Quantic Dream
Além das associações com a antiga crise de Detroit (a de 1950 até 1980 que praticamente quebrou a cidade), diversos assuntos pesados ganham paralelos aqui, como a escravidão, o preconceito e até mesmo o holocausto. David Cage já disse uma vez que não deseja passar nenhuma mensagem específica e que cada um de nós deve entender da maneira que acharmos melhor. E funciona. É realmente muito bom a forma como Detroit apresenta os androides e suas descobertas emocionais, suas dúvidas, medos, receios e até amor. Essa temática e construção de plano de fundo são excelentes e dão o tom sério que o jogo requer.
Detroit: Become Human
Certamente não há um grau de tensão e ansiedade para descobrir quem é o assassino serial como em Heavy Rain. E sinceramente? Nem deveria. Mas é inegável que a qualidade de seu antecessor ainda é melhor, mas isso está mais relacionado ao tema do que com a competência da desenvolvedora. É difícil criar algo tão bom em uma escala macro (Heavy Rain rumava mais ao micro), mas a qualidade da história ainda é bem alta.
Outro ponto negativo que a trama apresenta é a sua visão bem unilateral dos eventos. Durante a campanha, não há dúvidas que a mensagem (por mais que David Cage afirmar que não existe intensão de mensagem) é a seguinte: os androides também são formas de vida no universo do jogo. A única variável é a opinião pública, que reage de forma positiva ou negativa dependendo das suas ações (se elas são violentas ou não).
A história de Detroit: Become Human pode ser previsível e a visão dos eventos são bem unilaterais, sem dar uma ponta de dúvida sobre o que os androides fazem é certo ou não
A história é bem previsível em certo âmbito. Não há momentos provocativos que façam você questionar se tudo o que você está fazendo é realmente certo. Inserir a pontinha de dúvida no roteiro (à la "A Origem") seria perfeito para apimentar as coisas. E se durante a jornada você começasse a questionar se os androides realmente sentem e vivem?
Ritmo acelerado e sem enrolação (mas com alguns furos)
Um dos pontos negativos que Heavy Rain e até Beyond: Two Souls tinham era o ritmo lento de início. Detroit: Become Human tem sim capítulos de introdução de personagens, mas eles são interessantes e inserem o jogador no contexto futurista de 2038 ou ajudam a contextualizar a relação dos protagonistas com os humanos.
Você terá no máximo um ou dois capítulos curtos antes de a trama decolar de vez e, a partir daí, não terá nenhum momento de tédio ou trecho desinteressante. Apesar de ter cerca de 15 horas de campanha, Detroit não perde o ritmo em momento algum. Quando há sessões mais paradas, elas são intercaladas com outras mais agitadas de outro protagonista.
Connor durante os trechos investigativos, um dos meus prediletos do game
O game nunca deixa a peteca cair para beneficiar a estrutura de escolhas. Porém, essa intenção de evitar seções mais monótonas pode acarretar em pequenos furos de roteiro ou soluções mágicas. Como exemplo: em um determinado momento, você deve invadir uma emissora de TV e os personagens sabem exatamente como invadir, qual andar e o que fazer com precisão cirúrgica, mas nada disso é discutido antes. Como eles sabiam? Como um plano desses foi bolado?
É compreensível que o game não gaste tempo em sessões monótonas, mas a intenção de manter o ritmo às vezes acarreta em trechos mal explicados
São essas pequenas “soluções mágicas” que criam algumas incoerências na trama. Talvez dê para justificar em um caso ou outro (em certas ocasiões, suas decisões vão fazer com que você pule alguns trechos), mas como quase sempre essas partes são deixadas em aberto, mais parecem uma forma de tapar buraco no enredo do que algo que deveria ser óbvio ao jogador. Felizmente, esses trechos são escassos.
Detroit traz o mar de escolhas que prometeu?
Não é segredo que David Cage almeja cada vez mais criar aventuras que levam em consideração as escolhas tomadas pelo jogador para modelar um enredo mais orgânico. Heavy Rain tinha essa proposta, mas a atingia de uma forma um pouco mais rasa do que prometia (o fim era o mais importante, não a jornada). Detroit: Become Human não atinge esse objetivo inalcançável de caminhos quase infinitos, mas é um salto gigantesco em relação ao seu antecessor (não vamos considerar Beyond aqui porque a pegada foi outra).
Diagrama
Como David Cage disse em entrevistas, Detroit: Become Human é uma espécie de palco para as decisões do jogador. A trama em si é bem-feita (apesar de ter alguns furos de roteiro ou coisas mal explicadas) e satisfaz bastante, mas não há um enredo canônico no game e cada um dos jogadores terá uma história distinta no fim, pois há muitas variantes – afinal, esse é um dos pilares de Detroit.
Mas as escolhas realmente impactam da forma que foi prometida? Sim, e muito. O jogo realmente tem um leque de decisões gigantesco. A trama é dividida por capítulos de personagens: se imaginarmos cada capítulo como um rio, é possível dizer que há afluentes que jorram de todos os lados e se subdividem ainda mais.
Detroit: Become Human é recheado de decisões
Alguns capítulos podem durar 2 minutos ou 20, dependendo das ações que você tomar. Personagens podem morrer a qualquer momento e mudar drasticamente o fim da aventura também, nunca há uma tela de Game Over. Nem tudo são flores e há sim certos segmentos bem lineares e sem muitas escolhas, mas é compreensível. É simplesmente inviável criar um jogo com liberdades infinitas e há um limite para o que é possível fazer, mas esse limite é o maior ou um dos maiores do que já vimos em títulos narrativos.
Sim, os personagens realmente podem morrer em diferentes pontos da história e alterar consideravelmente os capítulos posteriores
Os maiores galhos cheios de possibilidades são poucos, mas eles se conectam com o que acontece a seguir, o que acaba sendo bacana. Nem sempre as conexões entre capítulos são grandiosas e trazem um resultado 100% orgânico, mas elas são convincentes e excelentes nos seus próprios âmbitos. Certamente, não é a tal “Galáxia de Escolhas” que a produtora afirmou que seria, mas é algo realmente bem impressionante.
Veja abaixo um exemplo de diagrama complexo e de um mais linear:
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Em outras palavras, apesar de Detroit: Become Human ter uma campanha bem grande para os padrões single player, a extensão do gameplay está em rejogar e experimentar rotas diferentes. No fim da jornada, eu tentei de tudo para ter o melhor final possível e tudo rolou ladeira abaixo. E acreditem: ao refazer o meio do jogo para frente mais duas vezes, fiquei embasbacado em como tudo mudou ao seguir caminhos diferentes. Há quase capítulos inteiros que você não verá durante a sua primeira zeratina e é bem impressionante descobrir essas mudanças.
A genialidade reside nos diagramas narrativos
Durante a campanha de Detroit: Become Human você se encontrará fazendo escolhas o tempo todo. Alguma delas dependem da sua pró-atividade, outras ocorrem com os diálogos dos personagens e, por fim, algumas dependem de contagens regressivas que podem ser ou não visíveis ao jogador, nos deixando tensionados a preocupados em realizar a escolha "certa" o mais rápido possível.
De uma forma ou de outra, o mundo está sempre se moldando com as suas ações e você poderá repeti-las para ver caminhos diferentes. Mas como ver se havia uma opção diferente? É aí que entra um dos trunfos do game: os diagramas de escolhas ficam visíveis ao término de cada capítulo.
Parece perigoso? Quase nunca o risco é tão alto
Mostrar isso ao jogador é algo realmente inteligente. Apesar de não entregar o ouro e dizer exatamente quais eram as outras opções, é possível ver que havia outros caminhos a serem seguidos aqui ou ali, algo que encoraja o jogador a reviver alguns trechos e ver como a narrativa poderia ter se desenrolado de outra forma.
Quase tudo neste modelo é muito bom e incentiva o replay. Contudo, há um ponto negativo: durante a sua primeira jornada, você provavelmente terá um rumo bem similar aos demais jogadores, pois dificilmente você vai errar muito ao ponto de um personagem morrer ou algo desastroso acontecer. Claramente Detroit o guia para final da trama de uma maneira mais linear e oferece variantes maiores somente no desfecho.
Apesar de realmente ser possível cometer erros grandes que alteram a trama logo no começo, o jogo não deixará que você faça isso facilmente. Poderia haver um risco maior e mais aleatoriedade
Isso é algo realmente estranho, pois o fator aleatoriedade e dificuldade certamente nos faria pensar melhor sobre tomar algumas decisões. É realmente difícil matar um personagem antes da hora e é necessário negligenciar bastante para ver isso acontecer, ou seja, escolher deliberadamente os piores caminhos e errar os comandos de propósito que aparecem na tela. Sem dúvidas, a mistura teria um tempero melhor o grau de liberdade fosse um pouco maior.
Jogabilidade “ok” e pouco ambiciosa
Assim como em Heavy Rain, precisamos realizar alguns comandos durante as sequências de ação e isso pode custar a vida de um protagonista ou criar situações irremediáveis. No restante do tempo, temos basicamente três variantes de gameplay: exploração, pressionar botões em diálogos ou investigação. Parece familiar? Sim, é a mesma coisa de sempre.
Para incentivar a exploração, há alguns colecionáveis pelo mundo que ajudam o jogador a se situar no universo de Detroit em 2038 (como a possível terceira guerra mundial, a concretização do aquecimento global, as espécies de animais extintas e o papel dos androides na sociedade) que realmente são bacanas, mas frequentemente você vai se deparar com falta de atividades e paredes invisíveis.
Colecionáveis de Detroit expandem o contexto do jogo
Você disse... paredes invisíveis? O jogo está cheio e vai limitar a sua exploração. A intenção é ter um guia enxuto, sem grandes expansões
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Em pleno 2018, o estilo Heavy Rain de jogabilidade e controles não é exatamente algo a ser louvado, já que a jogatina é basicamente uma grande sequência de Quick Time Events (mesmo na maior dificuldade, não há muitas mudanças). Não é como se fosse essencial ter uma variedade maior no gameplay, mas não seria nada ruim ver algumas adições (como mini games, poder mirar durante as sequências de ação e isso trazer consequências caso o jogador erre, e por aí vai).
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De uma forma geral, esse modelo (levemente antiquado e pouquíssimo atualizado) cumpre seu papel e é eficiente para dar liga à trama. Há alguns contrapontos que ainda perduram também, como os controles de movimento, mas nada que estrague a experiência. Em suma: é mais do mesmo, não espere grandes mudanças, e sim aquela funcionalidade "ok", eficiente para passar na média da escola, mas não mais que isso.
Isso é um grande problema? Não, até porque Detroit: Become Human é um drama interativo. Mas com tamanho grau de ambição nas entrelinhas da trama, não seria nada mal ver uma evolução neste aspecto. Com games do gênero chegando aos montes, como diversos títulos da Telltale e outros como Life is Strange (em alguns casos, há uma boa dose de exploração e bem mais liberdade), teria sido bom a Quantic Dream aprender uma coisa ou outra.
Um dos gráficos mais impressionantes do PlayStation 4
No fim, a história é a responsável pela imersão, não a jogabilidade. E ela nada seria sem a nova engine da Quantic Dream, responsável por um dos melhores gráficos da geração. As expressões faciais, as atuações dos atores, como Clancy Brown, Jesse Williams e Valorie Curry, e a ambientação extremamente fotorrealista nos ajuda a criar relações mais próximas com o que ocorre na tela.
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O detalhamento visual do jogo beira o absurdo e ajuda a construir o clima cinematográfico que a Quantic Dream almeja. Sem dúvidas, um dos trunfos de Detroit. É um pouco batido dizer hoje em dia que esse tipo de capricho fora da curva ajuda a criar imersão, mas é a pura verdade.
A desenvolvedora quis criar um mundo crível do ponto de vista narrativo, mas o fotorrealismo realmente é a cereja do bolo para dar credibilidade às mensagens da história. Os efeitos de profundidade de campo, a iluminação global, as texturas de alta resolução (há bugs que deixam alguns detalhes ruins, mas certamente isso será corrigido), os efeitos de sombra de altíssima qualidade, os shaders de chuva e neve, a qualidade de pós-efeitos na pele e muito mais criam uma ambientação de encher os olhos.
A atmosfera de Detroit: Become Human é impressionante
Quando tudo isso é combinado com atuações muito bem-feitas, é fácil ficar tocado pela encenação de medo, alegria e até mesmo amor dos androides do mundo de Detroit. Pode parecer besteira, mas ao ver um personagem implorando pela vida, exibindo pânico, derramando lágrimas ou até compartilhando ternura é, de fato, convincente.
E caso você queira, ainda pode jogar tudo isso dublado em português. O game traz uma das experiências audiovisuais mais fantásticas da geração e é compreensível como se chegou nesse resultado, já que não há inteligências artificiais ou processos rodando em segundo plano: tudo é scriptado e pré-determinado, dando espaço para o poder do PlayStation 4 trabalhar exclusivamente nos gráficos (e com suporte a HDR).
No PlayStation 4 Pro, o game roda com resolução 4K alcançada via checkerboarding e exibe detalhes ainda mais impressionantes
No PlayStation 4 Pro, essa riqueza de detalhes é ainda mais impressionante: o game roda com resolução 4K alcançada via checkerboarding. A técnica pode ser um pouco ruim em jogos com mais ação, mas como Detroit: Become Human é uma experiência mais pé no chão, o modelo cai como uma luva.
Vale a pena?
Detroit: Become Human não é um jogo curto, o que era uma das maiores preocupações. Você levará cerca de 15 a 20 horas para completá-lo, 20 a 25 horas para platiná-lo e uma contagem muito maior para ver tudo que ele tem a oferecer. O fator replay é altíssimo, as decisões realmente impactam a trama, a imersão é grande e os gráficos são um dos melhores da geração. Claro, a trama não é a mais incrível que há, mas os personagens e a cidade são muito bem-construídos e as atuações são convicentes, impressionantes e emocionantes.
Detroit: Become Human
Não, o game não é revolucionário e sim, pode se enquadrar na alcunha de “jogos filminhos”. Mas o teor narrativo aqui encontrado é de altíssima qualidade. No fim das contas, o jogo é sim feito para um nicho, mas isso não reduz os elementos geniais empregados. Nesse prato feito, o único tempero que fica faltando é uma jogabilidade mais evoluída e que saísse da sombra de Heavy Rain, mas a falta dele fica longe de estragar o sabor exótico.
Dramas interativos não são para todos. O que acaba diferenciando o game é a sua quantidade enorme de escolhas que impacta a narrativa, garantindo um replay bem grande. No fim, o resumo da ópera é o seguinte: se você gosta de Heavy Rain e de games do gênero, Detroit: Become Human é o melhor que há e certamente deixará sua marca na geração e no mural de obras de qualidade da Quantic Dream.
Este jogo foi gentilmente cedido pela PlayStation Brasil para a realização desta análise.
Categorias
- História coesa e muito bem-feita que aborda um tema bem interessante
- Apresentação de primeira, com plano de fundo muito detalhado e analogias incríveis
- Os personagens são excelentes e realmente nos leva em uma trama capaz de criar laços
- As decisões realmente importam e podem mudar ou trazer conteúdos novos para sua experiência
- Alguns capítulos são tão variados que chegam a assustar
- Campanha relativamente longa para um game single player e com fator replay altíssimo
- Atuações de primeira e ótimo trabalho de dublagem
- Um dos melhores visuais que o PlayStation 4 já teve até hoje
- Completamente dublado em PT-BR
- Jogabilidade ainda segue fórmula Quantic Dream e não inova (e os controles de movimento ainda são penosos)
- Há pequenos furos de roteiros e “soluções mágicas” na trama
- Alguns capítulos podem ser bem lineares
- Certamente há um caminho pré-determinado com pouca margem para erros no enredo (poderia ser mais aleatório e arriscado)
Nota do Voxel