Days Gone afasta fantasma do genérico, acerta na mistura e tem mundo imenso
Quando anunciado na E3 2016, Days Gone até chamou atenção: colocar o jogador contra hordas de zumbis num cenário pós-apocalíptico não é algo exatamente inédito, mas ainda tem espaço se executado com boas ideias, dentro daquilo que o gênero survival exige.
Não demorou muito para que o jogo começasse a ficar cercado pela assombração do genérico, em que uma única questão girava em órbita pela cabeça dos jogadores: “Mais um jogo de zumbis?”, me perguntei até outro dia, mas mantendo o espírito “bon vivant”, a expressão francesa que caracteriza uma pessoa a fim de aproveitar os prazeres da vida.
Basicamente, é isso que os games oferecem a todos nós, certo? Após ser adiado mais de uma vez, Days Gone transitou pra lá e pra cá nessa gangorra de expectativa e desconfiança por parte dos fãs, que acabaram por pegar um certo “bode” do jogo. É quando um produto demora demais para sair e, sobretudo, apresenta uma temática tão usada na indústria de entretenimento.
É diante desse contexto que Days Gone, assinado pela mesma equipe do saudoso Syphon Filter, busca, a todo momento, mostrar que nasceu para complementar essa roupagem, e não desperdiçá-la. Vamos aos detalhes.
Videoanálise:
História sem firulas
O primeiro aspecto notável de Days Gone é sua objetividade com relação à história. Ele não enche linguiça com longas cinemáticas e diálogos cheios de blá blá blá, em que energéticos e cafés se fazem necessários na jogatina. Em inúmeras análises que postamos aqui, é comum recorrer aos químicos de taurina para manter uma sobriedade mínima até tarde da noite.
O título da Bend Studio coloca você no epicentro de uma pandemia que devastou o mundo dois anos após o surto. É isso. É claro que, ao longo da jornada, o jogador vai querer buscar respostas para tudo que aconteceu, mas o prato oferecido aqui vai direto ao recheio: botar hordas de freakers – traduzidos como frenéticos – para você enfrentar junto a inúmeros outros desafios. Já chego lá.
As divulgações de Days Gone foram competentes em esconder o ouro. Em contrapartida, elas também despertaram esse sentimento de desconfiança que norteou o pensamento de todos nós sobre mais um jogo genérico de zumbis – pouco além disso foi mostrado, se pararmos pra pensar friamente.
A equipe da Bend Studio, que também cuidou de Resistance: Retribution, Uncharted: Golden Abyss (o ótimo Uncharted do PS Vita), além de toda a franquia Syphon Filter, não quis saber de dar margem para o tédio.
E quando há diálogos, eles são muito bem escritos, numa história conduzida com ótimo ritmo graças a um cara chamado John Garvin, o diretor-criativo e escritor, que também assina os textos conspiratórios de Syphon Filter – precursores da série “24 Horas”, aliás, e de Splinter Cell, na mesma vibração.
O protagonista de Days Gone é Deacon St. John, que, em seus tempos áureos, era membro de um motoclube. Quando o mundo começou a desmoronar, o motoqueiro e sua mulher, Sarah, foram separados pelo destino. Deacon sobrevive no fim do mundo ao lado de seu melhor amigo, Boozer.
Sarah é levada por um dos helicópteros de resgate rondando as áreas afetadas pela epidemia, mas não havia espaço para mais gente, deixando o protagonista pra trás. Então, dois anos se passam e um não tem notícia do outro durante o período. É nesse contexto que o jogador assume o papel de Deacon, que busca respostas sobre o paradeiro de sua amada na esperança de encontrá-la estar viva.
É bem, BEM survival – só que encapsulado numa fórmula acessível
Days Gone é um jogo de sobrevivência. Sobreviver é diferente de viver. Há uma grande ênfase no gerenciamento de recursos; você precisa ter faro de explorador para encontrar sucatas, querosene, garrafas, trapos, canos e outros materiais que são usados na criação de itens, que tem um sistema parecido com o de The Last of Us.
É possível, por exemplo, personalizar armas brancas colocando pregos na ponta de um bastão de beisebol, serra giratória na extremidade de uma tábua ou, ainda, uma combinação de lâminas num pé de mesa. Machados de cozinha ou de incêndio, facões e picaretas são outros dos apetrechos que Deacon encontra nesse mundo hostil, e lembre-se: todos quebram, assim como em Dead Island ou Dying Light, que também são focados em sobrevivência. A munição é escassa e exigirá um racionamento mínimo do jogador – na verdade, maior do que você imagina.
Preguiçosos de plantão podem ter a empolgação em xeque. A busca por suprimentos requer, além de um olhar clínico em minúcias dos ambientes, que sejam arrombados capôs e porta-malas de carros, caminhonetes, ambulâncias, jipes e afins. Em cada um desses tipos, recursos específicos são encontrados.
Os veículos da polícia, por exemplo, oferecem munição; os carros comuns costumam ter suprimentos gerais; as ambulâncias guardam itens de cura. E não é garantido que você encontrará tais recursos quando arrombar um veículo.
Casas abandonadas, cabanas isoladas em cidadezinhas de estrada, regiões montanhosas, fábricas e cavernas complementam o pacote – sempre com uma boa recompensa a quem tiver paciência para explorar. A apresentação é robusta, com surpreendente atenção aos detalhes e bom uso do ambiente para ocultar itens em locais oportunos. Fãs de Fallout e BioShock, que esconde objetos até atrás de tampas de privada, se sentirão em casa aqui.
O tamanho do mapa vai te surpreender – para bem ou para mal
Tudo tem um preço e uma recompensa em Days Gone. Nesse sentido, o jogo lembra até Zelda: Breath of the Wild, em que cada cantinho explorado traz algum conteúdo escondido. Nada está ali à toa; as coisas que você encontra no mundo aberto e a distribuição das atividades são introduzidas ao jogador organicamente, e não de maneira forçada.
Aliás, o mapa do jogo é colossal. Quando eu achava que estava prestes a concluir a jornada, a história assumia uma nova guinada e expandia o território em novas camadas. Isso aconteceu mais de uma vez. É maior que a área total de Horizon: Zero Dawn, por exemplo. Para um jogo que se retém a uma única plataforma, o escopo é ambicioso.
A região de Days Gone é separada em três partes diferentes, todas exploráveis com a ajuda da moto. Viajar pelas estradas, ora adornadas por campinas verdejantes e ora oprimidas por um temporal que quase jorra água no rosto do jogador, reserva momentos contemplativos em meio ao caos. Tudo acontece aleatoriamente graças ao clima dinâmico e ao ciclo de dia e noite.
Moto: uma extensão do “corpo” de Deacon
Elemento de suma importância em Days Gone, a sua motocicleta de estimação é, de longe, a principal companheira de toda a jornada. Trata-se de um aspecto fundamental da navegação pelo mundo do jogo e também faz parte da proposta de sobrevivência. De tudo que você pode aprimorar durante a aventura, acredite: turbinar a moto será uma prioridade. Ninguém vai te apontar o dedo a fazer isso; essa será uma necessidade natural.
Isso significa que sim, a gasolina é um recurso que também acaba e deve ser frequentemente abastecida para que seu transporte não te deixe à mercê de criaturas grotescas. Ficar sem a moto no meio desse alvoroço é a mesma sensação de se estar pelado em público. Você quer sair dali, quer se esconder e se sentir protegido novamente. A motocicleta providencia isso. Também dá para encontrar galões de combustível espalhados no mundo, postos ou ainda mecânicos que cobram para encher seu tanque.
A moto é uma extensão de Deacon, como se fosse um tentáculo do motoqueiro – ou, aqui, uma espécie de sentinela mesmo
A moto não é uma parafernália do Robocop. Ela toma dano com o tempo e requer peças de sucata para a manutenção. Raros são os momentos em que você fica à vontade – atropelar tudo sem medir consequências ou cair de locais muito altos acarretam problemas. E as peças de conserto são limitadas. Você sempre precisa buscá-las garimpando carros, casebres, lojas etc. Como eu disse: tudo nesse jogo é finito, e não infinito. Tudo é racionado e calculado, e nunca de um jeito injusto ou desequilibrado.
Você precisa estar alerta o tempo todo com seu inventário, e isso, conforme mencionado, vale para a munição também. Ela não existe em abundância e não é exatamente barata nas barracas de mercadores. Tudo isso é conduzido de uma forma acessível ao jogador, sempre com recompensa por uma exploração que não seja relapsa, sem deixar de lado o sentimento de ser desafiado. Cuide de sua motoca e de seu inventário como se fossem bichinhos de estimação.
A customização do seu meio de transporte é profunda também. Dá para personalizar sua moto, que começa crua de tudo, a gosto: tanque que comporta mais combustível, guidão diferente, pintura, escapamento, pneu, aro, adesivos, nitro, velocidade, força, farol e mais. Para fazer um save manual no mundo aberto, por exemplo, você precisa estar perto dela. É uma extensão de Deacon, como se fosse um tentáculo do motoqueiro – ou, aqui, uma espécie de sentinela mesmo.
Mistura na medida e a propagada “tecnologia de horda”
O mix de sobrevivência, tiroteios acalorados e abordagens furtivas se traduz num gameplay muito agradável, construído em cima de mecânicas conhecidas, mas que, bem aplicadas, entregam uma experiência robusta.
Days Gone usa a tão propagada tecnologia de horda, que consegue colocar até 500 freakers na tela sem comprometer a performance. Até existe uma ou outra queda de frame-rate em alguns momentos isolados, mas o uso dessa tecnologia dá um novo frescor a uma temática tão consumida na indústria de entretenimento.
Aliás, essas criaturas têm variantes dentro de sua espécie:
- Existem os quebradores, que são inimigos fortões;
- As atalaias, que gritam e alertam outros freakers sobre sua presença;
- Os alvejantes, ainda mais velozes que os frenéticos comuns;
- As lagartixas, que são freakers adolescentes.
E outros. Os animais também representam perigo: lobos, ursos, pumas, corvos e corredores, que são versões infectadas dos lobos, costumam te flanquear e aparecem nos momentos mais inoportunos possíveis.
Há também, é claro, as facções humanas, compostas por saqueadores e bandidos que atiram primeiro e perguntam depois. Existem ainda outros dois tipos de oponentes: os Rippers, que fazem parte de um culto macabro e seguem um código de conduta à base da loucura, e os agentes da NERO, uma corporação que investiga o local infectado e atira em qualquer coisa que se mexe também sem perguntar.
Destaque para a dublagem em português em alguns desses trechos. Deacon mata Rippers com a fúria de quem busca uma vingança antiga, sedenta de sangue – e o palavreado come solto do jeito mais espontâneo possível, como num cortiço sem gerência.
Esses trechos envolvem abordagem furtiva e também buscam amarrar algumas pontas soltas sobre tudo que aconteceu pro mundo ter virado de ponta-cabeça. Durante os tiroteios, há ainda o uso do foco, mecânica clássica que desacelera a ação e permite que você mire com mais calma nos inimigos. O foco, a sua saúde e a sua energia, que determina o quanto Deacon pode correr e rolar até ficar cansado, podem ser melhorados.
Galeria 1
A competência do sistema de progressão
O sistema de progressão de Days Gone, em linhas gerais, é viciante: tudo te dá ponto de XP para você trocar por habilidades, créditos de acampamento e confiança. Com o tempo, os comerciantes das pequenas comunidades confiam mais na imagem de Deacon e ampliam seu leque de produtos, oferecendo novas armas, mais upgrades para a moto e outros suprimentos.
Lembre-se: tudo acaba, tudo é limitado. Até o silenciador das armas, que é um filtro de óleo, tem limite de uso. É bem survival, vale frisar. O time da Bend Studio soube distribuir muito bem esses benefícios e conseguiu entregar aquela gratificante sensação de se estar mais forte com o tempo. A gangorra não pende mais para um lado ou para o outro; ela tem um autoequilíbrio que, tal como está, pode ficar intacta.
A distribuição e o layout dos freakers no mundo aberto lembram The Evil Within 2 em alguns momentos
Por sinal, isso é necessário para lidar com as hordas. Você vai precisar elaborar estratégias para usar o ambiente, plantar armadilhas, achar barris explosivos e planejar uma rota de fuga. Não se esqueça: até 500 freakers dotados de força e velocidade descomunais, iguais aos do filme “Eu Sou a Lenda”, correm atrás de você.
A distribuição desses seres repugnantes pelo mundo aberto, aliás, lembra The Evil Within 2 em alguns momentos. Se tudo der errado, tente se enfiar numa lixeira e reze para esses orcs vazarem. Inteligência, felizmente, eles ainda não têm. Ficam frustrados e vão embora – situação que pode se desenhar de maneira bem diferente com humanos, por exemplo.
O “leva e traz” de algumas missões da receita de mundo aberto...
Apesar da variedade de coisas a se fazer na vastidão pós-pandêmica, Days Gone tem muitas missões “leva e traz”, com aquela velha estrutura “vá ao ponto X e traga algo de volta ao ponto Y”. Isso é até necessário para introduzir algumas mecânicas do jogo, mas se repete um pouco além da conta.
The Witcher 3 ou GTA, para efeito de comparação, são exemplos de como utilizar um mesmo espaço para missões originais e diferentes. Claro que são escalas distintas, mas a receita é basicamente a mesma. É como se esses dois citados adotassem o espírito de gincanas de escola, cujo objetivo é utilizar uma mesma área para a realização de atividades que saiam do senso comum.
Em contrapartida, o conteúdo de Days Gone tem um escopo majestoso: você tem que liberar acampamentos de bandidos, limpar infestações de frenéticos queimando ninhos, restaurar energia das bases da NERO e se debruçar em nada menos que 240 colecionáveis, além de missões opcionais que engrossam a narrativa e desenvolvem melhor os personagens secundários.
Loading. Loading. Loading.
Os loadings demorados quebram um pouco o ritmo que Days Gone impõe para oferecer, ao jogador, a possibilidade de intercalar suas ações e não cair no famigerado tédio. O carregamento inicial, aquele pedágio obrigatório que aparece toda vez que se inicia o jogo, é bem demorado.
E frequentemente você se depara com a tela preta de loading ao ativar missões ou transitar entre alguns ambientes internos e externos. É algo que pode ser mitigado com atualizações, mas não completamente resolvido – especialmente se for um problema de fundação.
Alguns bugs, também oriundos da cartilha do mundo aberto, ocorrem com razoável frequência, como animais que ficam presos em texturas, objetos deslocados do cenário ou NPCs que se comportam como um robô em curto-circuito.
Em uma das missões, por exemplo, Deacon precisava subir num telhado com a ajuda de um companheiro, mas o NPC, preso numa repetição com o algoritmo quebrado, só se movimentava em círculos e não permitiu que o comando certo aparecesse na tela para que eu pudesse progredir na missão. Então, tive de recorrer à máxima de carregar o último checkpoint, atravessar um trecho anterior (novamente) e repetir a ação. Em circunstâncias similares, o contratempo se repetiu em pelo menos outras duas ocasiões. São percalços corrigíveis por meio de atualizações, mas que, durante a jogatina, atuaram como “estraga-prazeres” de uma festa divertida, sabe?
Nada que desabone o saldo positivo da experiência. A atenção aos detalhes de ambientes internos, por exemplo, é formidável: você encontra casas, escolas, lojas de conveniência, barracos e abrigos com salgadinhos, latinhas, abajur, pôsteres na parede, cortinas rasgadas, tetos putrefatos e até cadáveres de gente que se enforcou em lugares fechados, no banheiro ou no quarto. São elementos que criam uma atmosfera na imaginação do jogador sobre tudo que pode ter acontecido ali durante a ascensão do apocalipse. Esses detalhes são objetos 3D minuciosamente replicados, e não textura grudada em outra textura. Lembre-se de que outros sobreviventes também buscam recursos nesses lugares e podem disputá-los com você.
Fechando o pacote, o jogo oferece o já tradicional modo foto, com inúmeros filtros de edição que dão ferramentas para você brincar com cenários, inimigos, longitude, altitude, expressões faciais de Deacon e mais.
Veredito
Assombrado pelo fantasma do genérico, Days Gone esteve cercado de suspeitas por conta de sua temática usada à exaustão no entretenimento em geral. De novo zumbis? De novo apocalipse? De novo mundo aberto?
Eu digo sim a todas essas perguntas, mas não a um jogo genérico. Com sistema de progressão robusto, mundo aberto colossalmente maior do que mostra a ponta do iceberg, campanha duradoura, tecnologia de horda, ótimas mecânicas de combate/sobrevivência e aquele toque de narrativa que vem da mesma equipe de Syphon Filter, Days Gone não se abstém de problemas técnicos, supracitados nesta análise, e carece de originalidade em algumas missões, mas é competente em tentar surpreender e, humildemente, conquista a simpatia do jogador, que logo se identifica com Deacon e seu propósito em toda essa vastidão.
O talento de John Garvin como escritor, para quem é fã de Syphon Filter (como este que vos escreve), está intacto, oferecendo, na trama, reviravoltas que fazem o jogador vibrar, xingar e traçar possibilidades sobre o futuro. Claro que nem todos os personagens são marcantes ou têm motivações consistentes, mas a jornada pessoal de Deacon é legal de acompanhar.
Acima de tudo, Days Gone se sustenta por aquele que, em minha modesta opinião, é um dos aspectos primordiais da atual indústria de games: ritmo. O começo é um pouco lento, mas a aventura logo engata e despeja 30 a 35 horas para quem seguir em linha reta, só nas missões principais, e facilmente mais de 50 horas aos que quiserem explorar todo o conteúdo do mapa, dividido em três camadas que se expandem conforme você avança na história.
Eu torço para que todos vocês tenham o mesmo impacto que eu ao chegarem na terceira parte desse mapa. Sabe quando você sente o cheiro do final do jogo, em que tudo começa a se amarrar, e, mesmo assim, percebe que ainda há uma longa caminhada pela frente? Days Gone reserva essas surpresas e consegue seu almejado lugar ao sol.
- Mundo aberto colossal, separado em três partes, e absolutamente convidativo à exploração
- Hordas com até 500 freakers na tela: é divertido pensar em estratégias para eliminá-los
- História escrita por John Garvin, de Syphon Filter, reserva o mesmo tom de reviravoltas dessa franquia clássica
- Ótima dublagem brasileira
- Profunda customização da moto e robusto sistema de progressão
- Gameplay bem sintonizado entre tiroteio, lutas corpo a corpo e stealth
- Loadings demorados e intermitentes
- Problemas técnicos no algoritmo da inteligência artificial de NPCs faz com que o comportamento deles provoque risco ao progresso de algumas missões
- Missões “leva e traz” aparecem com razoável frequência e dão margem à repetição, especialmente no começo
Nota do Voxel