Darksiders 3 cumpre propósito fundamental de divertir, mas peca em técnica
Sempre sinto saudades de um hack’n’slash raiz. Como bom puritano que sou, prefiro que certas coisas se mantenham ligadas ao passado e, ao mesmo tempo, saibam evoluir com a modernidade. E sempre existe exceção à regra – God of War, por exemplo, soube se adaptar aos tempos contemporâneos, embora eu não esconda meu favoritismo pelo jeitão antigo da franquia.
Em algum lugar desse subgênero de ação, Darksiders se encontra como uma alternativa diferente, pois adiciona mundo aberto e o tempero Zelda à fórmula. O primeiro, lançado em 2010, não necessariamente foi um super-renome de crítica, mas rapidamente conquistou a fidelidade dos jogadores ao trazer uma abordagem diferente sobre os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, descritos em formato bíblico de maneira universal, em visões proféticas sobre o fim dos tempos.
O segundo, de 2012, intensificou a faceta RPG que o primeiro beliscou, mas já dividiu opiniões – Morte nem de longe tem o mesmo carisma de Guerra, por exemplo, e a história não se sustenta com a mesma adrenalina conspiratória do anterior.
A franquia quase apagou a luz até ser abraçada pela THQ Nordic e, então, enxergar uma longínqua oportunidade de ressurgir com Darksiders 3. Não exatamente com a mesma popularidade, não com o mesmo apelo, mas sob a mesma premissa: entregar um hack’n’slash raiz embalado por fundo mitológico e recheado de conteúdo. Será que, após esse hiato, com tudo que vivenciamos e experimentamos nos últimos seis anos, a saudade é a mesma?
Confira a videoanálise:
Cólera (não do dragão)
Originalmente, os quatro cavaleiros se chamam Guerra, Morte, Peste e Fome. No primeiro, você assume o papel de Guerra. No segundo, Morte é o protagonista. No terceiro, “Peste” é encarnada pela personagem Fury, aqui traduzida como “Cólera”, versão que também se convencionou ao longo dos anos na literatura, dividindo a acepção do termo com “Peste” ou “Fúria” mesmo.
A guerreira é incumbida de derrotar os Sete Pecados Capitais para salvar o irmão, Guerra, aprisionado por, teoricamente, desobedecer o Conselho das Chamas, uma entidade designada por leis ancestrais a “preservar a ordem e o equilíbrio”. A sinopse geral, para quem não se lembra, faz uma recontagem do apocalipse, em que o paraíso e o inferno se digladiam – você, na Terra, está no epicentro do conflito entre anjos e demônios, que pouco se importam com os humanos nesse contexto.
Cólera é irritada o tempo inteiro, é grosseira e ríspida, não tem um pingo de consideração ao que os outros podem pensar sobre ela – especialmente os humanos, todos vítimas da guerra. A personalidade explosiva, no entanto, se abranda ao longo da aventura, pois a combatente, embora determinada, sabe que a empatia é necessária para o sucesso de sua missão.
Sete Pecados Capitais fiéis aos seus formatos
A pedido do Conselho, Cólera deve derrotar os Sete Pecados Capitais. Cada um deles corresponde às características do nome que portam:
- Inveja – inveja do seu poder, das suas capacidades, do mundo, de tudo aquilo que não tem (até mesmo da beleza de Cólera);
- Ganância – apego excessivo aos bens materiais se converte em obsessão por poder aqui;
- Preguiça – pra quê se preocupar com as coisas do mundo se há quem possa fazer isso por você? Preguiça foi meu chefe favorito do jogo – eu acho que todos nós nos identificamos um pouco com esse pecado capital;
- Orgulho – o excesso de orgulho se traduz em arrogância, o que, em última instância, também se converte na sede por poder – ou por se gabar daquilo que não se tem;
- Ira – de todos os pecados capitais, ira talvez seja o mais objetivo: o sentimento humano de externar raiva ou ódio, de ver matança, de desejar o mal a outros;
- Luxúria – caracterizada pelo prazer carnal, a luxúria tenta te ludibriar com outros desejos, como mais poder ou mais sede de vingança – o que, em última instância, tem como objetivo despertar algum tipo de satisfação pessoal e egoísta;
- Gula – outro pecado capital com o qual todos nós conseguimos encontrar uma certa identidade. O desejo insaciável por comes e bebes também se traduz em egoísmo humano – e é exatamente esse o dilema abordado aqui.
Muito se discute sobre os pecados capitais que a humanidade – todos nós – comete. Darksiders 3 traz à tona algumas reflexões válidas para a sociedade (especialmente hoje) e empacota tudo isso num formato mitológico cheio de potencial, mas bota o pé no freio da ambição bem antes do que poderia – dava para ter se soltado para eliminar clichês. Além disso, algumas barreiras técnicas impedem a trama de brilhar mais.
Gameplay gostosura – mas tecnicamente limitado
A Gunfire Games, que assina o desenvolvimento, foi honesta o suficiente para não esconder a humildade de sua produção. Darksiders 3 é um projeto de menor escopo e, portanto, tem aquela cara de produto com menor valor de produção, mas há muito amor nos códigos de programação – embora nem todos os algoritmos sejam certeiros.
O gameplay segue a cartilha da franquia e traz um hack’n’slash agradável, leve e descompromissado, sem as firulas da atualidade. O chicote de Cólera tem um charme de Castlevania; ele se estica bem para os lados, emite um som esvoaçante e rasga inimigos com estilo. É quase um tentáculo vivo.
É como se Darksiders 3 pudesse dar uma impressão muito melhor uns oito anos atrás, sendo exatamente do jeito que é, do que agora
Herdada dos Zeldas em 3D, a mira em Z, por meio da qual você pode rodear inimigos enquanto foca neles, é tão simples quanto funcional; envelheceu bem e ainda tem muito pano pra manga no futuro. Cólera tem várias armas diferentes, que mudam a cor do seu cabelo e também suas habilidades de exploração, dando um ar de Metroid em junção à já mencionada inspiração de Castlevania – resultando no bom e velho Metroidvania, uma soma que nunca vai morrer.
Algumas habilidades permitem que a guerreira alcance áreas antes inacessíveis, enquanto outras melhoram o poder de combate ou possibilitam que ela resolva puzzles específicos. Há uma boa variedade de ações aqui, dentro da simplicidade que o jogo entrega. Isso, por outro lado, tem um preço.
Galeria 1
Não é possível favoritar itens numa roda de quatro escolhas, por exemplo. Não há roda alguma para acessar acessórios ou utilizáveis, na verdade. Seria ótimo poder mapear alguns favoritos no D-pad, mas você é obrigado a navegar por todos os objetos que está portando numa faixa horizontal até chegar ao item desejado. O sistema de atalho é defasado.
Falta robustez nesse sentido: um toque de complexidade no inventário, combinação de itens, habilidades que se cruzem ou uma árvore de skills que seja. Com tudo que vivenciamos nos últimos anos, sobe a barra de exigência. É natural, é a evolução dos gêneros e das coisas.
Só há, basicamente, três categorias de evolução da Cólera, que progride em níveis: Saúde, Força e Poder Arcano. Este último determina o poder do contra-ataque, os golpes carregados e a Forma de Caos, em que a protagonista assume um porte maior e fica invencível por tempo limitado.
Há quedas de frame com frequência razoável e telas de loading sofríveis. Quebram o ritmo igual aquele cara sacana que, numa jogatina de sofá, pausa a partida quando está prestes a tomar um gol ou um golpe fatal.
O sentimento que isso transmite é o de estar jogando um título da geração passada, sabe? Não é algo necessariamente ruim, é apenas uma observação. Esse excesso de simplicidade, que se abstém de mecanismos mais robustos, imprime um ar de produto simplório, algo que se reflete também nos cenários e texturas sem tanta riqueza de detalhes ou na pouca quantidade de objetos.
É como se Darksiders 3 pudesse dar uma impressão muito melhor uns oito anos atrás, sendo exatamente do jeito que é, do que agora.
Aquela Dark Souslzada que divide opiniões
Não se engane: ainda que carregue consigo as ressalvas supracitadas, o jogo tem um combate gostoso. Simples, funcional e com uma escolha deliberada de design: não há botão de defesa, apenas esquiva. Quando Cólera desvia de um ataque na última hora, a ação desacelera e abre uma brecha para que a guerreira desfira um poderoso contra-ataque arcano nos inimigos.
Darksiders 3 não escapou das garras da fórmula Souls. Não há checkpoints “avulsos” na aventura; você precisa alcançar pedestais – que seriam as fogueiras – em que é possível comprar itens e subir de nível graças a Vulgrim, o comerciante cadavérico que ajuda Cólera em sua jornada. Assim como os dois anteriores, o mundo é interconectado.
O bichinho Souls é aquele em que, uma vez picado por ele, você rapidamente se flagra jogando por horas a fio sem perceber
Ao morrer, suas almas são deixadas no último lugar em que você esteve para que possa haver a chance de resgatá-las (sim, aqui são almas também, assim como em Dark Souls). Para alguns, isso é ruim, uma vez que coloca em xeque a identidade original da franquia ou complique demais um sistema que, em tese, deveria se manter às raízes.
Por outro lado, o ingrediente traz uma camada adicional de desafio e também introduz aquele bichinho do vício: uma vez picado por ele, você rapidamente se flagra jogando por horas a fio sem perceber. Essa é a magia da fórmula Souls, mas não significa que automaticamente se traduza em algo positivo – até porque Darksiders 3 não vem das mãos da From Software, e sim da Gunfire. Uma mesma receita aplicada por chefs diferentes não necessariamente fica igual.
Bom. Ponto.
Darksiders 3 é bom. Não é muito bom, não é ótimo, mas de forma alguma é ruim. É apenas bom. É um apanhado de boas ideias e, sobretudo, um trabalho humilde feito com muita paixão, sentida em cada detalhe e visível aos olhos dos fãs. A isso, tiro o chapéu. É sempre louvável sentir o amor da equipe nas entrelinhas.
Apesar da ótima intenção, a Gunfire deslizou em aspectos sumários da execução. É um jogo tecnicamente limitado; um produto vítima de sua própria simplicidade, cheio de boa vontade, mas carente de maior ambição.
Os problemas com frame-rate e telas de loading devem melhorar com futuras atualizações, mas as questões ligadas a conceitos de fundação, que resultam na falta de robustez do sistema como um todo, são imutáveis.
Ainda assim, Darksiders 3 pode valer o seu tempo. O material para agradar os fãs está ali; a aventura dura cerca de 15 a 20 horas. Sem a força do primeiro e potencialmente melhor que o segundo, o terceiro título da franquia gera mais dúvidas sobre seu futuro do que responde, mas consegue cumprir o propósito fundamental de divertir.
Categorias
- Combate leve, gostoso e funcional
- Exploração agradável à la Metroidvania
- Os Sete Pecados Capitais estão representados de maneira legítima dentro da fantasia do jogo
- Razoável frequência de quedas de frame-rate
- Telas de loading demoradas
- Excesso de simplicidade abstém o jogo de mecanismos mais robustos, como roda de habilidades, atalho de favoritos, árvore de skills e mais
- A história poderia ter ido além para se soltar muito mais
Nota do Voxel