Uma viagem ao tempo em que os RPGs japoneses dominavam o mundo dos games
A Square Enix é um caso estranho no mundo dos RPGs japoneses atuais: enquanto grande parte das empresas dedicadas ao gênero desapareceu ou reduziu sua atuação ao mundo dos portáteis devido aos altos custos impostos pela sétima geração de consoles, a companhia responsável por Final Fantasy se viu presa à sua própria grandiosidade, que a obrigou a criar títulos cujo objetivo era atingir o maior público possível.
Isso resultou não somente no Final Fantasy com o maior número direto de sequências, como fez com que a companhia lançasse diversos spin-offs, reedições e títulos alternativos que carregavam o nome dessa série consagrada — o que acabou por desgastá-la frente aos olhos do público.
Devido a esses fatores, não é difícil entender o motivo que levou a companhia a apostar em um nome totalmente novo com o lançamento de Bravely Default. Sequência espiritual de Final Fantasy: 4 Heroes of Light (game exclusivo para o Nintendo DS), o RPG segue a fundo a cartilha que os jogos clássicos da franquia estabeleceram durante as eras 8 e 16 bits, usando um nome diferente com o intuito de se distanciar das características nem sempre positivas adquiridas pela marca Final Fantasy nos últimos anos.
Um JRPG tradicional
Em Bravely Default, você guia um grupo de quatro aventureiros que deve viajar através de um mundo em crise com o objetivo de restaurar quatro cristais que controlam o funcionamento de elementos como os ventos e a água. Se a história parece familiar é porque ela segue exatamente o mesmo preceito visto em Final Fantasy III, Final Fantasy V e outros jogos produzidos tanto pela Square Enix quanto por outras empresas.
A diferença em relação aos games do passado fica por conta do fato de a história possuir algumas subtramas e camadas narrativas adicionais colocadas sobre essa premissa batida, tratando de temas como o embate entre religião e progresso e dando um maior espaço para o desenvolvimento de personagens. Em diversos momentos da trama, surge a opção de participar de pequenos diálogos que ajudam a aprofundar as motivações de seu grupo, mostrando a reação de seus companheiros aos eventos que ocorrem — ferramenta típica à série Tales (da Bandai Namco) que é muito bem aproveitada aqui.
Quando você não está vendo cenas não interativas, explorando ambientes ou conversando com NPCs, está participando de batalhas em turnos nas quais você decide as ações de todos os combatentes para, só depois que todas as escolhas forem feitas, elas serem realizadas. A ordem em que cada ataque, magia ou habilidade especial é reproduzida depende tanto da velocidade de cada personagem e inimigo quanto das características específicas de cada opção escolhida.
O ponto no qual Bravely Default se diferencia de seus semelhantes é no sistema Brave/Default, que serve como uma forma de acumular turnos ou agir diversas vezes de uma só vez (o que traz como consequência a impossibilidade de realizar ações durante algumas rodadas). Esse sistema simples faz com que as batalhas do jogo (especialmente aquelas contra chefes) se tornem bastante estratégicas, carregando sempre uma boa relação entre benefícios e consequências indesejáveis.
Ao optar pelo uso da opção “Brave”, você pode realizar até 3 ações adicionais além daquela aos quais seus personagens normalmente têm direito. Já escolher a alternativa “Default” faz com que um lutador se defenda e perca seu turno, trazendo como benefício o fato de que ele acumula uma ação extra que pode ser utilizada posteriormente sem nenhuma espécie de punição.
Saber balancear essas duas alternativas é essencial para sobreviver aos encontros aleatórios de Bravely Default e, principalmente, suas batalhas contra chefes. Especialmente levando em consideração o fato de que o jogo dá bônus de experiência caso uma batalha seja encerrada já no seu primeiro turno, é comum se ver realizando cálculos mentais rápidos para decidir se vale a pena ou não apostar em uma tática de combate mais agressiva, mas que pode gerar frutos indesejáveis no futuro, ou se é melhor agir de forma segura, mesmo que isso faça os personagens progredirem em um nível mais lento.
Sistema de profissões abrangente
Além de cada um dos quatro protagonistas possuírem níveis individuais, eles também podem optar por uma entre diversas profissões que possuem 14 níveis de evolução diferentes. Como cada uma das opções disponíveis se especializa em uma área diferente (cavaleiros são mais aptos ao combate enquanto magos brancos são usados para curar seus personagens), é sempre uma boa ideia criar um grupo formado por combatentes com trabalhos que atuam de forma complementar entre si.
Conforme você progride em uma das opções disponíveis, são destravadas habilidades que ficam associadas ao herói que a desbloqueou. Como cada protagonista pode combinar as ações-nativas de duas classes diferentes (além de algumas habilidades passivas pertencentes a qualquer trabalho no qual já há certa especialização), isso resulta em um sistema complexo que exige uma troca frequente de papéis caso você queira criar uma equipe realmente poderosa e flexível.
Embora o sistema de Bravely Default não seja tão complexo quanto o de Final Fantasy V, tampouco apresente a quantidade de opções presentes em Final Fantasy Tactics ou em Tactics Ogre, ele se mostra complexo o bastante para forçar o jogador a passar algumas horas planejando e treinando seu time ideal. Como muitos dos trabalhos disponíveis estão condicionados à finalização de missões secundárias, sua presença serve como um grande estímulo para você investigar cuidadosamente cada canto do jogo.
Toques de modernidade
Talvez o ponto que mereça mais destaque em Bravely Default seja a comodidade que ele oferece ao jogador, algo que será notado principalmente por quem já é bem familiarizado com o universo dos RPGs japoneses tradicionais. Apesar de ainda apostar em batalhas aleatórias, o game permite que você ajuste a qualquer momento a frequência com a qual elas ocorrem através de seu painel de configurações.
Caso você simplesmente queira explorar algum ambiente sem ser incomodado, basta simplesmente desligar os confrontos do jogo — algo que elimina a obtenção de experiência e pode tornar alguns combates mais difíceis do que o necessário. Já nos momentos em que é preciso evoluir a equipe, basta alterar mudar algumas configurações para que as batalhas aleatórias surjam em um ritmo duas vezes maior.
O jogador realmente hardcore também pode optar por desligar a obtenção de dinheiro e de pontos de experiência ou simplesmente parar a evolução dos trabalhos disponíveis no game. Como todas essas opções podem ser ajustadas a qualquer momento, simplesmente não há motivo para que você não perca pelo menos algum tempo ajustando o funcionamento do jogo de forma a adequá-lo às suas exigências e gostos pessoais.
A lista de comodidades também inclui um sistema de saves automáticos (ótimo para não perder muito progresso caso seu grupo caia em batalha) e a possibilidade de ajustar a velocidade dos combates — algo que se mostra extremamente útil para os momentos em que você simplesmente quer ganhar experiência e não está muito disposto a ver as mesmas animações sendo repetidas dezenas de vezes.
RPG social
Bravely Default toma algumas lições de jogos típicos a redes sociais e apresenta um sistema de construção de cidades que, se não totalmente essencial para o desenvolvimento da trama, apresenta vantagens interessantes caso seja bem utilizado. Logo nos primeiros momentos da história, a cidade natal do herói Tiz é destruída, e cabe a você (com o auxílio do Street Pass do Nintendo 3DS) reconstruí-la.
Todo o gerenciamento desse processo se dá através da tela de toque do portátil, e é necessário investir determinada quantidade de tempo para destravar cada uma das áreas e construções disponíveis. A reconstrução de uma loja de itens, por exemplo, pode exigir a espera de 5 horas, enquanto o desbloqueio de uma nova região pode exigir uma espera de 48 horas.
No entanto, em vez de apelar a microtransações para agilizar o processo, o título só pede que você utilize o Street Pass do 3DS. Cada pessoa com a qual seu aparelho se comunica é adicionada ao número total de habitantes de sua cidade, sendo que é possível atribuir mais de um deles a cada uma das construções disponíveis — a restauração feita em 12 horas por uma única pessoa pode ser completada em 3 horas caso você designe três cidadãos a essa função.
Microtransações ignoráveis
As microtransações do título surgem na forma de um sistema conhecido como “SP Drinks”, acumulados naturalmente conforme você deixa o portátil da Nintendo em repouso enquanto o jogo está sendo executado — ao todo, é possível acumular um drink a cada 8 horas, sendo que a capacidade máxima do jogador é de 3 itens do tipo.
Esse recurso serve como uma forma de “trapacear” nas batalhas, permitindo que seus personagens realizem ações nos momentos em que isso normalmente não seria possível — basicamente uma forma de ignorar as consequências trazidas pelo abuso da opção “Brave”. Cada vez que você faz isso, um SP Drink é consumido e é preciso esperar até que ele seja recarregado: isso é, se o jogador não preferir investir dinheiro real na compra desse elemento.
Felizmente, a maneira como o título é construído permite ignorar totalmente a existência dessa opção, sendo que em nenhum momento surge a sugestão para que você a utilize como forma de superar algum desafio mais intenso. Aparentemente, essa opção foi incluída simplesmente como uma exigência dos executivos da Square Enix, já que os desenvolvedores do RPG dão pouquíssima atenção a ela — tanto é que, depois do tutorial obrigatório, ela sequer é mencionada durante o desenvolvimento da história.
Adição essencial à biblioteca do Nintendo 3DS
Misturando bem elementos tradicionais e opções que o ajudam a torná-lo bastante moderno, Bravely Default é tão obrigatório quanto Fire Emblem: Awakening à biblioteca de jogos dos donos do Nintendo 3DS que admiram um bom RPG japonês. Apesar de o título perder um pouco de ritmo em seus momentos finais e apresentar uma dublagem em inglês nem sempre muito inspirada (os puristas obrigatoriamente devem alterar o idioma do game para japonês o quanto antes), a experiência geral que ele oferece é nada menos que excelente.
Oferecendo mais de 70 horas de conteúdo, o título é uma das opções mais completas disponíveis atualmente para o portátil e prova que a Square Enix ainda é capaz de fazer títulos tão inspirados quanto aqueles que consagraram a empresa nas eras 8, 16 e 32 bits. Resta esperar que a sequência do game, já confirmada para o Japão, não exija tanto tempo para ser adaptada ao Ocidente quanto esse primeiro jogo da franquia exigiu.
Categorias
- Bom uso de sistemas tradicionais
- Embora presentes, microtransações não são intrusivas nem obrigatórias
- Apresenta uma série de comodidades incomuns ao gênero
- Ritmo da aventura é prejudicado em seus momentos finais
- Alguns atores de voz apresentam um desempenho apagado
Nota do Voxel