Bloodborne rasga sua carne com perfeição
Desde que Bloodborne foi anunciado, eu já sabia que a morte me esperava. Mas eu não sabia como exatamente ela me aguardava. Seria algo rápido e indolor? Ou iria o pobre Sotobello sofrer mais uma vez nas mãos de Hidetaka Miyazaki, criador da série Demon’s e Dark Souls?
Confesso pra vocês que essa dúvida me acompanhou até eu colocar as mãos no jogo. Depois disso, joguei e joguei cada vez mais, dando meu máximo pra extrair tudo do game. Fiz dois textos de análise em progresso, que você deve conferir aqui e também aqui, coloquei amigos que nunca tiveram contato com a série pra jogar e conversei muito com todos que estavam jogando o game.
No final das contas, Bloodborne me surpreendeu não pelas suas semelhanças com as geniais obras da série Souls, mas por suas diferenças. É, meu amigo, até aqui nesta terra amaldiçoada de Yharnam nós temos sim surpresas maravilhosas e que vão te prender por horas e horas numa belíssima relação entre amor, ódio e recompensa. Se prepare, depois das almas, agora a From Software vai tomar seu sangue.
Outra pegada
Pode-se dizer que a jogabilidade de Bloodborne é a base do que vimos na série Souls instalada em outra estrutura. E essa estrutura dita todo restante do jogo, desde as mudanças no próprio ritmo até as diferenças nos elementos de RPG que já conhecíamos.
Em favor de uma experiência mais rápida, vão embora atributos como Poise (Equilíbrio) e peso de equipamentos, já que a ideia da From Software é criar uma experiência unificada pra todos os jogadores, com uma agilidade que só varia pelas armas.
No começo, quem já conhece a abordagem da série Souls vai acabar procurando por itens e atributos que simplesmente foram deixados de lado, mas que acabam fazendo total sentido pra proposta.
Mesmo assim, a galera experiente com certeza vai ter mais facilidade pra dominar o básico do jogo, mas isso não significa que o game é fácil. Na realidade, os fãs vão ter problemas com a memória muscular criada com a série Souls, usando itens de vida quando tentavam transformar suas armas e insistindo num estilo de combate passivo, que já não cabe em Bloodborne e é facilmente punido.
Os novatos vão sofrer ainda mais, mas não porque Bloodborne é um jogo injusto, mas porque ele coloca todo peso em você. Você morre porque você errou. Porque você foi muito ambicioso e ficou desesperado pra matar logo um chefe. Ou porque não memorizou bem o cenário e acabou se prendendo em um canto.
E é justamente essa sensação de “ah não, não acredito que fiz isso” que é rapidamente transformada em “vou voltar lá e provar pra mim mesmo que eu consigo”. Esse círculo vicioso é a magia que faz de Bloodborne um game tão envolvente, agora com uma pegada diferente.
Afiando suas armas
Outra novidade interessante de Bloodborne são as armas de truque. O arsenal aqui não é tão grande quanto da série Souls, mas as opções são muito mais relevantes e criativas, já que cada arma apresenta duas formas de combate.Isso faz das lutas algo ainda mais estratégico e dinâmico, dando novos ares pra uma fórmula que já estava à beira do desgaste.
Os ataques convencionais, forte e normal, continuam mapeados nos botões R2 e R1, mas agora você pode transformar sua arma a praticamente qualquer momento, basta pressionar L1. Essa transformação também pode ser feita durante os combates, adicionando um terceiro tipo de golpe que se inicia na fase primária e termina com a arma transformada.
Além de um espetáculo de animações, tal manobra é extremamente útil pra jogadores estratégicos, que sabem quando a batalha exige mais força ou mais alcance, por exemplo.
A dinamicidade do jogo se estende dentro das próprias armas de truque, já que algumas armas contam com golpes ainda mais peculiares, incluindo armas que são seguradas com as duas mãos e até mesmo espadas que disparam tiros. Com cerca de 15 armas, Bloodborne consegue criar um arsenal que é praticamente totalmente aproveitável, deixando de lado armas que servem apenas de enfeite.
Sua melhor defesa é a esquiva
Outro fator que muda totalmente a dinâmica da jogabilidade em relação à série Souls é a ausência de escudos. Tudo bem, você até encontra um velho escudo de madeira, mas o próprio jogo avisa que ele é inútil e usá-lo é praticamente pedir pra morrer e ser zombado.
O seu principal recurso de defesa são os movimentos evasivos, que agora são muito mais ágeis e consomem menos estamina. E como os inimigos também estão mais velozes e brutais, é essencial que você domine o esquema de dash, que varia quando sua mira está travada ou não.
A fórmula cai extremamente bem na proposta e traz um outro tipo de dificuldade ao game, obrigando você a arriscar e sempre ficar ligado em seus arredores.
Tiros e mudanças
Pra compensar os escudos, Bloodborne coloca armas de fogo em sua mão direita, que possuem uma função quase que limitada aos contra-ataques. Ao pressionar o botão L2, seu personagem atira e, se isso for feito no exato momento em que o inimigo está atacando, então ele fica atordoado. Essa é sua chance de executar um golpe brutal que pode facilmente tirar a vida do oponente.
Ao contrário do que se pode imaginar, as pistolas, bacamartes e até canhões de Bloodborne não substituem os feitiços e arcos da série Souls. O alcance das armas é pequeno e usando o item monóculo, que coloca o jogo em uma visão estilo shooter, as armas se mostram ineficientes como ferramentas de aniquilação primárias. O atributo Matiz de Sangue aumenta o dano dos tiros, mas os disparos mais potentes se restringem às armas de truque que possuem este poder.
A From Software já tinha comentado que não encontraríamos magias aqui, mas temos sim algo parecido. Chegando perto da metade do jogo, somos introduzidos a itens especiais que necessitam de pontos de atributo Arcano para funcionarem e consomem Balas de Prata.
Tais itens são utilizados normalmente, com o botão quadrado, e são invocações sobrenaturais que podem acabar facilmente com alguns inimigos. Temos um total de 9 ferramentas de caçador, como são chamadas dentro do game, e seu uso é interessante, mas não chega a substituir a eficiência das armas de truque.
Outra mecânica nova do game é o esquema de recuperação de vida. Cada vez que você é atingido, você vai perceber que o dano recebido aparece como uma fração laranja em sua barra. Se você tiver coragem, pode tentar revidar os ataques e recuperar um pouco do que foi perdido. É mais uma situação de risco, mas que pode trazer uma recompensa essencial: nada menos que a sua própria sobrevivência.
De início, cheguei a pensar que ela facilitaria o game, já que usei o modo desespero e decidi bater até morrer no primeiro chefe. A tática funcionou, mas na realidade, eu tive sorte. Depois, revidar se tornou algo totalmente estratégico e muitas vezes eu ficava em dúvida se tentava bater em quem me atingiu ou se aceitava a perda de vida e usava um frasco pra recuperar meus pontos em segurança.
O sonho dos caçadores
É claro que nem só de pesadelos vivem os jogadores de Bloodborne. Na realidade, o game conta com uma área conhecida como O Sonho dos Caçadores. Tal lugar funciona como o hub do game, da mesma maneira que tínhamos a Nexus em Demon’s Souls — embora, desta vez, as lápides tem de ser desbloqueadas.
Aqui no sonho, você também pode subir de nível, algo que funciona da mesma maneira que os jogos da série Souls. Mas, em vez de almas, agora consumimos Ecos de Sangue, que servem como a moeda geral de Bloodborne.
Além disso, os Ecos servem pra comprar itens e, ao contrário dos outros games de Miyazaki, comprar se tornou algo muito mais frequente, já que a única loja do game tem uma progressão contínua, abrindo novas armaduras, armas e itens conforme o jogador avança.
À propósito, os inimigos de Bloodborne têm drops limitados à itens e gemas. Nada de armas ou armaduras, então o jeito é aproveitar as lojas e torcer pra achar equipamentos em baús e corpos espalhados por Yharnam.
Um detalhe interessante: agora, as armas do game contam com slots pra gemas, funcionando de um jeito parecido com o que a gente viu em jogos como Diablo e Shadow of Mordor.
Com essas gemas, você pode adicionar atributos específicos pros seus brinquedinhos, transformando-os em armas de fogo, aumentando o dano e muito mais. O bacana é que as gemas que você escolhe influenciam na sua estratégia, então pense bem antes de partir equipando uma arma com veneno pra um lugar em que todo mundo já é podre.
Um terrível mundo de possibilidades
Partindo do Sonho dos Caçadores, prepare-se pra enfrentar criaturas inimagináveis. Os inimigos de Bloodborne são as criações mais nojentas e ameaçadoras já feitas por Miyazaki e muitas deles parecem ter saído diretamente de filmes de terror.
Não é nem um pouco exagero dizer que o Survival Horror também corre pelo sangue de Bloodborne, então se prepare pra levar alguns sustos em momentos em que você já tava bem tenso. Destaque também pros chefões, que agora mudam de forma constantemente e ainda contam com ataques extremamente rápidos e brutais. São raras as vezes em que você vai encontrar um chefe que mostre um esboço de piedade.
O que não é nada rápido, por outro lado, é o tempo que você vai levar pra terminar o game. O universo do game é gigantesco e, somando as mortes, quests secundárias e áreas e chefes secretos e outras surpresinhas, você deve levar em média umas 50 horas pra terminar a aventura. Tudo perfeitamente talhado, com o level design mais impressionante dos últimos anos.
Além das missões principais, Bloodborne apresenta as dungeons procedurais, que são masmorras opcionais criadas por meio de rituais. Aqui, você gera mapas aleatórios e com diversos níveis diferentes. Seu objetivo, entretanto, é sempre o mesmo: encontrar uma alavanca, abrir a área do chefe e matá-lo.
Além de gerar uma experiência sempre diferente, e que pode ser compartilhada com outros jogadores, graças a um código especial, as Chalice Dungeons também contam com itens exclusivos, incluindo duas variações pra cada arma de truque. Tal variação muda o tipo de gemas que podem ser acopladas às armas.
Jogadores ensanguentados
Toda experiência se torna ainda melhor graças ao revolucionário sistema online, criado por Miyazaki lá em Demon’s Souls e que agora ressurge aprimorado. Invocar e ajudar se tornaram processos simples graças ao esquema de sinos do game e também a um sistema de senhas, que facilita as partidas entre amigos.
Ao badalar um sino, o jogador cria uma busca contínua por um anfitrião ou convidado, permitindo que você continue jogando até finalmente se conectar com outro gamer. Isso deixa tudo muito mais direto e você não precisa mais ficar um bom tempo procurando sinais pra invocar alguém.
Outra novidade é a aparição da Donzela do Sino, que surge sempre que você invoca alguém para cooperar em sua aventura. Uma vez que ela aparece, os jogadores partem pra uma busca guiada pelo próprio som do sino da Donzela, que permanece tentando invocar invasores para o seu mundo.
Esse é o preço que pagamos por uma aventura ao lado de outros jogadores e que deixa a experiência ainda mais envolvente.
Quando o combate entre jogadores acontece, notamos logo de cara que a ausência dos Backstabs — finalizações acionadas com ataques pelas costas dos inimigos — deixa tudo mais interessante. O PVP deixa de ser uma dança pra tentar cutucar as costas do inimigo e passa a ser uma batalha muito mais intensa.
Outro ajuste bacana é que agora há um limite menor de itens que podem ser carregados. Por exemplo, você não pode partir pro game com 99 coquetéis Molotov e 99 papéis de fogo, já que o jogo limita a quantia pra um número bem mais justo, deixando o excedente pro baú do Sonho dos Caçadores.
As mensagens também voltaram e continuam com seu papel fundamental de guia pra novos jogadores. Uma novidade é que agora as frases pré-definidas podem ser acompanhadas de gestos, o que facilita ainda mais a orientação.
Queixo-caído
O meu melhor conselho, seja você veterano ou novato, é: vá com calma. Não só porque Bloodborne é um jogo mais difícil do que a indústria atual oferece, mas porque Bloodborne é nitidamente um jogo feito com amor.
Cada detalhe dos ambientes parece ter sido cuidadosamente colocado a mão, criando uma das atmosferas mais sinistras e envolventes dos últimos anos. Tudo isso regado por uma direção artística louvável e que consegue te surpreender até mesmo quando você acha que já conhece todo o game. Cenários mudam, sons surgem do nada e tudo isso contribui pra lembrar que você ainda não dominou o game.
A história é contada da maneira típica de Miyazaki, com poucas cutscenes e uma narrativa que se resume a diálogos e descrições de itens, deixando boa parte da interpretação para a já contaminada mente do jogador.
É como se estivéssemos lendo um livro dentro de Yharnam. Pra facilitar, o jogo tem a opção de textos e dublagens em português, então, mais uma vez, vá com calma e aproveite esta sangrenta viagem.
Trepidando em falhas técnicas
Bloodborne é um tiro certeiro em termos de design, jogabilidade, direção de arte e inovação. Por isso, as poucas falhas aparecem apenas na parte técnica. Não há como ignorar os longos loadings em determinadas regiões, que passam de 40 segundos em alguns casos.
E às vezes, os carregamentos surgem logo após você morrer para o primeiro inimigo encontrado num cenário que, na teoria, já deveria estar carregado. Mas não, o jogo vai lá e faz todo o loading novamente.
Mesmo sendo o jogo mais estável da From Software, também notamos a queda na taxa de quadros por segundo, principalmente em algumas regiões específicas e quando estamos jogando com outros jogadores. A From Software prometeu uma atualização para melhorar estes detalhes, mas, até agora, nada.
Vale a pena?
Bloodborne quebra paradigmas em uma indústria saturada de jogos preguiçosos, em que as grandes ideias muitas vezes se limitam à pequenos projetos independentes. Miyazaki inovou em Demon’s Souls e conseguiu ir ainda mais longe com Bloodborne, um game que mostra o quão grandiosa esta mídia pode e deve ser.
São dezenas e dezenas de horas de conteúdo, descobertas, conquistas e lutas ao lado ou contra amigos. Tudo é caprichado, visivelmente feito com amor pra nós, carentes amantes desta arte. Por isso, não dê bola pra esse papo de dificuldade exagerada. Difícil mesmo é não recomendar esta obra-prima. Umbasa e até a próxima.
Categorias
- Jogabilidade dá novos ares ao que vimos na franquia Souls
- Imensidão de conteúdo a ser explorado
- Modo online ainda mais refinado e fluído
- Direção de arte surpreende nos cenários e inimigos
- Gráficos exploram os limites do PlayStation 4
- Loadings grandes
- Quedas ocasionais na taxa de quadros por segundo
Nota do Voxel