A cena é típica. Você se aproxima de um cruzamento com o seu carro tunado. No meio fio, um pobre, indefeso e “pixelizado” pedestre prepara-se para atravessar a rua. Em um dia normal, você simplesmente deixaria que ele tocasse a sua vida sem objetivo em frente e, quiçá, até daria a vez para que o agradecido sujeito atravessasse a rua. Não aqui. Não desta vez.
Em seguida, deliberadamente, você simplesmente arremessa o seu possante veículo para cima do pobre sujeito, sem absolutamente nenhum motivo aparente — afinal, é fácil lidar com algumas poucas viaturas de polícia, e uma ou duas estrelas são facilmente esquecidas. Ou, na pior das hipóteses, nada que uma boa repintura no carro não resolva.
As escolhas morais estão presentes nos jogos desde os primeiros títulos que resolveram perguntar para o jogador: “E aí, o que você faz agora?” Ok, talvez os games baseados em mundos abertos (sandbox) sejam mais fortemente associados a essa tendência — tal como você acompanhou na cena acima, que bem poderia ter se desenrolado em GTA IV. Mas sem dúvida não fica só nisso.
Senão, é só pegar alguns exemplos bem diversos: o primeiro Myst (campeão absoluto de vendas para PC até o aparecimento de The Sims) trazia uma trama simples, mas repleta de decisões de cunho moral. Em uma ilha enigmática, você era convidado a tomar partido de um de dois irmãos que digladiavam para conseguir a liberdade; as suas decisões levam a trama a três finais distintos. O que estava em cheque ali era bastante claro: a sua noção particular de “bem” e “mal”. Ou, em outros termos, a sua moral.
De fato, a possibilidade de decisão entre ser um exemplo de virtude ou a epítome do mal encarnado pega hoje desde os RPGs, passando para jogos de corrida — Need for Speed Shift, por exemplo — e mesmo os FPS. Haja vista o recente Call of Duty: Modern Warfare 2 e sua controversa cena na qual você, um membro infiltrado em uma organização terrorista, se vê diante de um terrível dilema: chacinar pessoas inocentes para se tornar também um inimigo do estado... Ou atravessar toda a cena sem disparar um único tiro, arriscando assim ser desmascarado e, consequentemente, sumariamente fuzilado?
Ok, é verdade. Nesse último caso em particular, é possível simplesmente evitar a complicada escolha moral ao escolher, no início do jogo, que as cenas mais controversas devem ser simplesmente cortadas do enredo — algo um tanto desprovido de sentido, diga-se de passagem. Mas isso não muda uma verdade: juntamente com gráficos imponentes e jogabilidade interativa, passar o comando das coisas para os jogadores tem também se tornado uma diretiva geral para os desenvolvedores.
Mas, será que as decisões morais que existem nos jogos de hoje refletem, de fato, a nossa realidade? Será que as suas decisões dentro de GTA IV, Fallout 3 ou Mass Effect encontram durante a trama consequências à altura? É exatamente isso que o TecMundo Games pretende descobrir. Vamos aos detalhes.
Faça do seu jeito!Às vezes é bom poder sair dos trilhos
Colocar escolhas morais dentro de jogos tem se tornado uma tendência entre praticamente todos os gêneros de jogos eletrônicos. Desde jogos de corrida, RPGs e títulos de ação, é cada vez mais comum encontrar momentos em que você, respondendo pelo personagem do jogo, terá que decidir se ajuda ou não alguém, mata ou não um informante, explode ou não uma bomba nuclear adorada por uma estranha facção religiosa (Fallout 3).
fonte: IGN.com
Mas será que é sempre necessário dotar uma trama de bifurcações ou trifurcações morais? Quais deveriam ser os critérios para quem resolvesse perguntar: “E então amigo, o que você faz agora?”. Segundo o designer-chefe de Fallout 3, Emil Pagliardo, sistemas morais deveriam ser incluídos apenas quando têm lugar em um ambiente de jogo. “Se faz sentido incluir escolhas morais, se é algo central na trama ou na jogabilidade, e torna o jogo mais agradável, então certamente o sistema moral tem lugar”, afirma Pagliardo.
Particularmente, “em Fallout 3, o esforço dos jogadores em um ambiente pós-apocalóptico proporciona a opção perfeita para um sistema de escolhas morais; então, para nós, é algo bastante necessário”. Para o designer, o simples fato de o jogo colocar nos ombros do jogador a decisão quanto à natureza de um personagem — será que ele é realmente “mau”? — transforma mesmo as experiências mais corriqueiras dentro de um jogo em um acontecimento.
E esse coro é engrossado por outro nome proeminente na indústria. Mike Laidlaw, da BioWare (Mass Effect e Dragon Age: Origins), acredita que legar ao jogador as decisões transmite um senso de responsabilidade sobre a trama: “Trata-se de uma mecânica que (...) ajuda os jogadores a entender que as atitudes tomadas tem um impacto para além do momento”, afirma Laidlaw.
Mas devem existir consequências...
Conforme colocou a editora Laura Parker em artigo para o site Gamespot.com, não faz sentido adicionar um sistema moral a um jogo a penas que as suas escolhas tragam consequências dentro da trama. “Para que a moralidade funcione apropriadamente em um ambiente de jogo, os desenvolvedores precisam prestar atenção às consequências das ações dentro do jogo (...), usando-as para dar formato e afetar tanto a narrativa quanto a jogabilidade”, explicou Laura.
Em outras palavras, a realidade do jogo deve ser capaz de absorver adequadamente as suas decisões em cada ponto, modificando assim a experiência de jogo. Sim, existem possibilidades nesse sentido: você se torna persona non grata caso não ande na linha em Fable II, e também terá a polícia no pé caso resolva espalhar o caos em GTA. Entretanto, a indústria não parece completamente livre de limitações em relação à forma como o mundo de jogo se adapta às suas escolhas.
Limites da moral eletrônicaAté onde você é realmente dono do seu próprio nariz virtual?
Nos idos do saudoso Atari 2600, as suas escolhas eram bastante razoáveis e inegavelmente óbvias. Abasteça o seu pequeno avião ou afunde em um mar de pixels azuis; tire o seu canhão móvel da linha de fogo do inimigo para não acabar como uma pilha de destroços. Em suma, as decisões eram inequivocamente ligadas à sua sobrevivência no jogo, o que absolutamente não deixava dúvidas quanto à forma de agir.
Mas a realidade hoje parece ser diametralmente oposta. Afinal, atropelando ou não um sujeito na rua em GTA, chacinando ou não uma Little Sister em BioShock 2, a trama do jogo simplesmente vai continuar, deixando a ideia de que, em algum momento futuro, o seu karma bom ou ruim voltará para reivindicar o equilíbrio das coisas. Mas será que é sempre assim?
Santo ou demônio?
Uma das questões mais levantadas atualmente em relação às possibilidades dos sistemas morais dentro de jogos diz respeito à concepção quase sempre maniqueísta — “bem” e “mal” absolutos —, o que não deixaria espaço para matizes de cinza. “A moralidade não é uma concepção ‘preto e branco’”, afirmou a editora Laura Parker em artigo do site Gamespot.com. “A realidade raramente é tão simples como uma decisão entre bem e mal; o espectro de comportamentos morais é tão complicado quanto nossos sentimentos”, conclui Laura.
Em outras palavras, raramente uma decisão no mundo físico é absolutamente boa ou má; frequentemente, o que se tem é antes uma postura relativa — algo que será certo ou errado dependendo do ângulo que se olhe. Entretanto, as escolhas dentro dos jogos frequentemente colocam duas opções como diametralmente opostas, fazendo com que o personagem seja demarcado com um karma “bom” ou “mau” — assassinar Little Sisters em, por exemplo, aumentará as chances de um final pouco agradável para o Big Daddy racional de BioShock2.
Para o professor de filosofia da Universidade Central de Oklahoma (EUA), Mark Silcox, a questão deveria ser mais bem estudada pelos desenvolvedores dejogos. “Se nós pudéssemos fazer algo aqui, seria pedir para que os designers de games lessem alguma breve introdução aos sistemas filosóficos ocidentais”, afirma Silcox.
O professor afirma ainda que os games, assim como qualquer outra forma de arte, deveriam perambular livremente por questões morais. “Algo que nós sempre enfatizamos, é que a boa arte não pode simplesmente mostrar atitudes ‘más’ que conduzem a consequências ‘ruins’. A vida real nem sempre é assim”, conclui Silcox.
Fuja da história se puder!Quando “algo” não quer que você saia da linha
Embora exista atualmente uma ampla gama de títulos que declaradamente legam ao jogador as escolhas morais, fato é que nem sempre ser o “cara mau” é uma natural ou simples. Quer dizer, o jogo pode até oferecer a possibilidade de se encarnar um bastardo sem nenhuma ética. Só que, em algum momento, você será forçado a voltar para a linha. Trata-se de uma mão invisível que surge para redimir o herói... Ou para exibir um belo “Game Over”.
Isso ocorre porque, embora seja possível incluir algumas decisões morais simples que, eventualmente, tragam consequências funestas, a trama principal do jogo sempre vai seguir uma orientação hegemônica. E — adivinhe? — essa direção segue normalmente um direcionamento moral único. Em outras palavras: erre à vontade, mas volte para o caminho “certo” em algum momento futuro.
Um bom exemplo disso poderia ser ainda o bom e velho GTA. Embora o título da Rockstar seja naturalmente controvertido, traga atos libidinosos e assassinatos a rodo, você dificilmente conseguiria escapar por muito tempo da trama principal. Senão, basta tentar assassinar sumariamente um dos sujeitos que distribui missões no jogo. A consequência é óbvia: “Mission Failed”.
Sim, você pode ser um fora da lei. Mas não muito
O recente Red Dead Redemption, também da Rockstar, traz outro exemplo bastante claro do sistema “faça do nosso jeito ou morra tentando”. Em determinado momento, um cafetão vai exigir US$ 200 para liberar uma das meretrizes que pretende seguir para um convento.
A escolha racional salta à vista: enfiar duas balas na cabeça do sujeito não apenas vai liberar instantaneamente a meretriz, como ainda fará com que você economize 200 contos. Bem, seria assim, não fosse pelo “Mission Failed” que surge antes mesmo de o defunto tocar o chão. O negócio é seguir o caminho das pedras: pague o sujeito, descubra posteriormente que ele matará a mulher de qualquer forma e, aí sim, volte para fazer justiça. Por quê? Simples: o jogo quer assim.
É claro que nenhum designer empurra a sua própria noção de moral goela abaixo simplesmente porque gostaria de doutrinar o jogador. A limitação aqui é óbvia: uma liberdade absoluta implica inúmeras possibilidades de continuidade dentro de um mesmo jogo; e acaba sendo um tanto difícil prever todas as atitudes distintas que um único jogador pode tomar em pontos centrais da trama. Dessa forma, o mais razoável é quase sempre trazer o gamer novamente para os trilhos. Mas já há quem tente coisas diferentes...
O pioneirismo de Mass Effect e Fallout
Mass Effect 1 e 2, assim como a série Fallout, são provas incontestáveis de que, aos poucos, os games tem sim absorvido noções de moral mais, digamos, evoluídas. Ambas as franquias são superlotadas de exemplos nos quais você não assume papeis simplesmente “bons” ou “maus”.
Se não, basta lembrar de um evento naturalmente controverso de Fallout 3. Em certo momento, o seu protagonista será arremessado para o meio de uma batalha entre humanos e ghouls. De fato, existe uma escolha simples e óbvia aqui: aliar-se a um dos lados para exterminar o outro. Entretanto, também é possível bancar o pacificador, garantindo assim a coexistência pacífica das raças.
Mass Effect vai até um pouco mais longe nesse ponto. A sua orientação moral em particular não apenas é levada em conta em cada jogo, como ainda pode ser exportada para o título seguinte. Ok, não são mudanças assim tão fortes no enredo e, via de regra, você ainda deverá seguir um caminho das pedras mais ou menos previsto pelos desenvolvedores. Mas é um começo, certo?Uma tendência certa
Enfim, você pode chamar de “status”, “notoriedade”, ou simplesmente de “o meu personagem ficou com os olhos vermelhos!”. Mas é fato: assim como o desenvolvimento tecnológico dos consoles, colocar cada vez mais responsabilidade nas mãos do jogador parece ser uma tendência certa para o futuro.
Mas isso não deveria ser levado a cabo sem algumas ressalvas. Conforme visto, a moral atualmente em voga nos games não é completamente capaz de emular o que se tem no mundo real, limitando-se a uma cópia simplificada. Ou, conforme colocou a jornalista Naomi Alderman em coluna ao jornal The Guardian: “Assim como melhoraram os gráficos, eu gostaria de ver também a atuação dos personagens se tornar menos ‘pixelizada’. Que assim seja.