Quando o palco dos teatros resumia a maior parte das possibilidades de mídia artística, provavelmente não fazia muito sentido falar em perspectivas. Afinal, existia o palco, e as pessoas se posicionavam a frente dele para assistir às peças, e provavelmente a única variedade se encontrava na posição da sua poltrona dentro do salão.
Mas surgiria então o cinema e, principalmente, a câmera de cinema. Embora as primeiras filmagens que se tem conhecimento ( final do séc. XIX e início do séc. XX) ainda mantivessem um estilo bastante teatral de retratar as imagens — com uma câmera fixa simulando a posição de um espectador em uma sala de teatro —, aos pouco os cineastas da época perceberam que o enquadramento de uma cena não era exatamente um elemento neutro, mas influenciava decisivamente na forma de se contar histórias.
De certa forma, a história dos games emula a trajetória da sétima arte. Afinal, se hoje os jogos migram cada vez mais para um terreno antes exclusivo do filmes, com ângulos em movimento e tomadas precisas, houve uma época em que tudo se parecia com um palco de teatro.
Da hegemonia 2D à plena utilização das câmeras
Talvez não fossem os mesmos motivos que limitavam uma profusão maior de perspectivas no teatro e nos video games. Entretanto, a analogia parece correta: em ambos os casos, o pontos de vista era fixo por questões principalmente técnicas. O teatro não possuía ainda a câmera, e os primeiros programadores de jogos ainda não contavam com as ferramentas gráficas que permitem os voos quase ilimitados dos jogos atuais.
Dessa forma, tudo se resumia ao mesmo quadro fixo, tal qual o palco de um teatro. E assim foi durante um bom tempo, desde os jogos do Atari, passando para o saudoso Nintendinho e, posteriormente, a guerra acirrada da quarta geração de cosoles — Super Nintendo e Mega Drive. Na maioria das vezes, o que você via era o mesmo quadro fixo, desde a primeira fase até o último chefe.
Entretanto, com as novas ferramentas gráficas, finalmente se tornou possível uma abordagem móvel dos jogos. Embora inicialmente as diferentes tomadas tenham sido utilizadas com o único propósito de facilitar a vida do jogador, aos poucos novas possibilidades de se “contar história” utilizando perspectivas distintas apareceram. De forma que, hoje, tem-se toda uma gama de possibilidades para tornar as imagens de um jogo cada vez mais imersivas.
Primeira pessoa do singularEu, o jogador
Colocar uma câmera “dentro da cabeça” de um jogador significa mais ou menos: “agora você é o personagem. O que vai fazer?”. Trata-se de uma das maiores conquistas das ferramentas gráficas modernas. Quer dizer, com uma câmera móvel, por que não fazer com que o jogador enxergue os mundo “in-game” através de uma perspectiva particular?
Afinal, em jogos como Modern Warfare 2, BioShock e Mirror’s Edge — este estreando um novo estilo, que se poderia chamar de “ação em primeira pessoa” —, você não é mais um sujeito à parte do jogo, que controla um pequeno robô na tela, ou um ouriço. Você encarna o próprio personagem, enxergando todo o mundo de jogo do seu ponto de vista particular.
Primeira pessoa do plural
Mas não precisa ser apenas “eu”. Quer dizer, por que não “nós”? Sim, existem jogos em primeira pessoa do plural. Afinal, que outro nome dar a alguns jogos da franquia SOCOM, ou ainda Ghost Reccon? Mesmo as CGs de Modern Warfare 2, ao mostrarem a ação em pontos diferentes da mesma história, acabam evocando a ideia de solidariedade — já que existem companheiros empenhados na mesma batalha, você não está sozinho, certo?
Terceira pessoa do singularFoco no personagem
Sim, a ação em terceira pessoa cobriu uma imensa parte dos primórdios nos games. Mas isso não significa que o gênero não possa aprender um ou dois truques com as novas possibilidades gráficas, é claro. Afinal, juntamente com a utilidade óbvia das câmeras móveis, surgem também “bullet times” (Max Payne, por exemplo), ou ainda a súbita mudança de terceira para segunda pessoa quando se lança a arma principal do protagonista em Dark Sector.
Discurso indireto
Mas existem variações. Ou melhor, escapes à regra. Afinal, que nome se poderia dar àqueles jogos em que a câmera parece repousar sobre o ombro do protagonista? Perspectiva em “2,5 do singular”? Existe ali uma aproximação maior com o ponto de vista do protagonista, porém sem chegar a “entrar na cabeça do herói”.
Para utilizar um palavrório um tanto complicado, seria possível citar aqui uma coluna do designer de jogos Steven Poole. O artista comparou, em sua coluna na revista Edge, o pontos de vista nesses jogos com o discurso indireto de escritores como o francês Gustave Flaubert, de forma que “a narração é feita em terceira pessoa, mas apresenta também observações do protagonista”. Tudo bem, se quiser, chame simplesmente de “2,5”.
Perspectiva atmosférica
Trata-se de um recurso absolutamente imprescindível para tornar o cenário de um “side-scroller” em 2D minimamente real. Basicamente, ao observar uma cena, a nossa visão é automaticamente atraída para pontos de alto contraste entre cores. Dessa forma, para criar a sensação de profundidade em um jogo 2D, o designer cria um fundo em tons pastel, deixando as tonalidades mais fortes para o primeiro plano, o que torna a perspectiva naturalmente geométrica do estilo muito mais convincente. Simples e engenhoso.
Segunda pessoa do singular?Cumplicidade com o jogador“Como assim ‘segunda pessoa do singular’?”, você deve estar se perguntando. Bem, realmente não se trata de algo realmente inédito. Qualquer um que tenha jogado RPGs de mesa, ou lido os clássicos livros de aventura interativos já deve ter se deparado com trechos do tipo: “você está diante de uma porta de madeira maciça e com ferrolhos; o que você faz?”.
Para Steven Poole, a perspectiva em segunda pessoa, o autor “pode (...) atrair o leitor a uma cumplicidade involuntária, fazendo parecer que ele está perigosamente perto de quem lê”. Mas, a rigor, nos games, isso não ocorre apenas quando alguém — o jogo — dirige-se diretamente a “você”.
Câmera em segunda pessoa
Há quem defina a “segunda pessoa do singular” também em relação à perspectiva gráfica oferecida pelo jogo. Trata-se daqueles (raros) momentos em que você vê o seu protagonista pelo olhos de outro personagem — normalmente um inimigo. Basta lembrar aqui de um dos chefes de The Legend of Zelda: Phantom Hourglass ou, pegando um exemplo bem mais saudoso, o primeiro chefe de Battletoads. Trata-se de um efeito que, inconscientemente, reforça no jogador a ideia de que ele realmente “é” o protagonista.
Quando a própria perspectiva entra em campo
Talvez uma das maiores provas de que as diferentes tomada de câmera foram finalmente incorporadas pela indústria de games sejam os jogos que utilizam essas tomadas como parte do seu desafio. Afinal, uma perspectiva diferente pode alterar o próprio mundo de jogo? Sim, caso você esteja jogando echochrome ou mesmo o vindouro Lost in Shadow. Enfim, a perspectiva pode fazer toda a diferença.
Para o designer Steven Poole, um “ponto de vista não é apenas uma perspectiva; é uma relação particular com um mundo imaginário”. E, assim como ocorreu nos cinemas, é interessante perceber que os pitorescos mundos “pixelizados” contem hoje também com inúmeras formas de levar suas realidades fantásticas até o jogador. A recente (re)popularização dos ambientes estereoscópicos (3D) demonstram a extensão quase ilimitada desses potencial. Mas isso é uma outra história.