Imagine que você está andando pela rua e, ao atravessar uma avenida movimentada, não olha para os dois lados e se surpreende com um ônibus em alta velocidade. No mundo real, você teria apenas alguns segundos para rezar uma última oração antes de ser destruído pelo veículo. Em um mundo sem clipping, porém, você seria atravessado pelo coletivo e ainda poderia rir da cara do motorista.
Imagem do game Rome: Total War
Uma das principais etapas da programação de um game é o estabelecimento de bordas e pontos de contato, de forma que o game reconheça paredes, objetos do cenário e os locais onde os personagens se tocam. Isso é o clipping. Apesar de, no mundo real, tal questão ser objetiva, ela representa um dos principais desafios durante o desenvolvimento de um game.
Uma questão de atenção Ou não
Ao contrário de outros defeitos gráficos, como o pop in, por exemplo, o clipping nem sempre é um problema causado por programação mal feita. Normalmente, ele ocorre quando um game apresenta tamanha quantidade de variações que é impossível contemplar todas elas com animações exclusivas. Seja por questões de prazo para entrega do jogo, espaço em disco ou falta de capacidade de processamento nas plataformas.
Street Fighter IV, e suas versões Super e Arcade Edition, é um dos games que mais sofre por problemas de clipping causados por variações entre personagens. Como os lutadores do game possuem formas corporais bem variadas, não é incomum ver golpes especiais em que pernas e braços atravessam os membros do oponente. Uma situação do tipo pode ser vista na imagem ao lado.
O pilão de Zangief atravessa as pernas de Blanka mas o mesmo não acontece (ou ocorre com menos intensidade) quando quem recebe o ataque é Dhalsim. A diferença entre o grossura das pernas dos dois personagens faz com que a animação padrão do Ciclone Vermelho atravesse ou não os membros de seus adversários. Tal problema, porém, em nada afeta a jogabilidade.
Problemas no sistema de colisão também podem gerar barreiras invisíveis e impedir personagens de seguirem por caminhos claramente abertos. No vídeo acima é possível observar um erro grosseiro em Tomb Raider Underworld, mas bugs do gênero estão presentes também em uma série de jogos como Mafia II ou Grand Theft Auto IV. Apesar de também não serem grandes empecilhos na jogabilidade, são uma clara violação ao direito de ir e vir do cidadão e frustrantes para dizer o mínimo.
Alguns títulos, porém, ultrapassam completamente as barreiras da programação ruim. E isso em um sentido literal. Vamos falar mais uma vez de Big Rigs: Over the Road Racing, game distribuído em 2003 pela Activision.
Vamos ignorar os gráficos horrorosos, os péssimos menus e o total desrespeito às leis da física. Os desenvolvedores ignoraram completamente o sistema de colisão, criando caminhões capazes de atravessar casas e edifícios sem problema algum. Também é possível observar um momento em que o veículo atravessa uma ponte, provavelmente passando por cima do rio localizado abaixo do cenário.
Note também um momento em que o caminhão chega aos limites do cenário do game e começa a saltar pela tela. Esse é o assunto de nosso próximo tópico.
O jogo pode até ser infinitoMas o cenário não
Durante o desenvolvimento dos títulos, os produtores definem um mundo limitado no qual o game se passará. Normalmente, isso é marcado por barreiras intransponíveis, como grandes montanhas, muralhas ou qualquer coisa que impeça o progresso do jogador. Isso acontece pois atrás da parede está o limbo, literalmente. Um local sem programação alguma.
Isso não significa que tais lugares são totalmente inacessíveis. Devido a bugs no game, alguns jogadores mais fuções podem atravessar estas barreiras e chegar ao nada para, normalmente, verem seus jogos travarem sem esperança de retorno. Isso acontece em Big Rigs e, no vídeo abaixo, também em Red Dead Redemption. No segundo caso, o jogador invade uma casa no qual não deveria ter entrado e descobre paredes invisíveis devido à falta de texturas.
Quando o problema vira soluçãoKitty Pride ficaria orgulhosa
O problema, muitas vezes, pode ser utilizado também para facilitar o progresso do jogador. O comando “no clip” ficou famoso no início da era dos FPS, quando um comando permitia que o personagem atravessasse paredes. A grande maioria dos jogos da época, como Quake e Doom, apenas para citar dois exemplos, contam com cheats do gênero.
Tal artifício era útil para jogadores mais apressadinhos que queriam progredir rapidamente pelas fases, pois dispensava a busca por chaves e a realização de enigmas. Como o comando dispensava completamente a relação de impedimento entre personagem e cenário, era preciso tomar cuidado. Caso o jogador ultrapassasse uma barreira e encontrasse o limbo, o jogo poderia travar, levando junto todo o progresso facilitado pela ausência de barreiras.
Para brincar com os espertinhos que insistiam em jogar seus títulos dessa forma, a id Software decidiu incluir um easter egg em Duke Nukem 3D. No antigo game, a utilização do “no clip” dava acesso a uma fase escondida e inexistente no modo campanha. A arena Faces of Death é exclusiva do modo multiplayer.
O extra, apesar de interessante, serve também como um beco sem saída para os jogadores que gostam de atravessar paredes. Por ser uma fase voltada para combates competitivos, não existem objetivos a serem completados ou um final definido para ela. Sendo assim, o usuário se vê obrigado a reiniciar o jogo, pois não é possível seguir em frente a partir de Faces of Death.