Talvez você encare aquele seu jogo preferido apenas na “última camada da cebola”: um amontoado de pixels dançando de um lado para o outro, criando, simultaneamente, um ambiente belo e aprazível — no qual você gosta de passar algumas das melhores horas do dia. Entretanto, caso se olhe a coisa toda pela outra ponta do espectro, há todo um processo de deliberação, edição, escolhas e mesmo de apostas cegas.
E, na verdade, boa parte disso tem início mesmo antes de que algo de efetivamente “tecnológico” passe a ser produzido — digamos, na forma de linhas de código ou da exploração de bibliotecas gráficas de uma linguagem específica de programação. Por exemplo? O desenvolvimento de personagens.
Afinal, seria muita inocência acreditar que personagens quase “vivos” como Ellie (The Last of Us), Ethan Mars (Heavy Rain) e Sofia Lamb (BioShock 2) surgiram apenas alguns poucos insights — seguidos de programação lógica e gráfica frenéticas! Não mesmo.
Embora devam existir tantos métodos para o desenvolvimento de um personagens quanto há roteiristas no mercado do entretenimento eletrônico, parece, entretanto, haver certos pontos comuns na hora de trazer à vida algo que, inicialmente, não passa de um nome em um papel — focados não apenas na própria psique de um personagem central, mas também em sua relação com os demais personagens e com o mundo de jogo em várias profundidades distintas.
A ilusão precisa ser mantida
Em artigo publicado no site Gamasutra, o designer Rafael Chandler — cujo trabalho pode ser visto em jogos como SOCOM 4, Ghost Recon 2 e Rainbow Six: Lockdown — tratou de diversas ferramentas que podem ajudar um designer/roteirista a dar os primeiros sopros de vida. Trata-se de dar vários passos além do que, de outra forma, poderia acabar com uma coleção de estereótipos.
“Conforme os jogos continuam a amadurecer e se tornar mais sofisticados, as expectativas para os valores de produção apenas aumenta”, escreveu Chandler no referido texto. “Esses valores de produção incluem gráficos, música e história.” Para ele, a história está diretamente ligada ao desenvolvimento de personagens. Ou, “o que acontece” com eles “conforme os eventos se descortinam ao redor”.
Ele continua: “O desenvolvimento de personagens não vai tornar a sua jogabilidade melhor, mas vai ajudar a criar uma experiência mais satisfatória, conforme você forja um contexto mais bem desenvolvido, com um mundo de jogo imersivo a ser explorado pelo jogador”. Basicamente, trata-se de responder de forma satisfatória perguntas como “Quem é o personagem?”, “Com quem ele se relaciona?” ou “Ele é interessante?”.
“Clichês e estereótipos são inaceitáveis”, diz Chandler, reforçando a necessidade de realimentar a imersão promovida por um jogo — o que pode ser comprometido caso se inicie um desfile de soldados genéricos “marombados” e beldades a serem salvas. “Essa ilusão pode ser completamente estilhaçada por um roteiro e um desenvolvimento de personagem sem inspiração.”
Um possível caminho das pedras
A fim de fornecer ferramentas ao roteirista/designer (seja ele amador ou profissional), Chandler propõe, em seu referido artigo, quatro passos que podem ser tomados para dar mais corpo à criação — fornecendo uma orientação preciosa ao criador que, eventualmente, enfrente problemas para canalizar a sua inspiração.
“Essas técnicas fornecem questionamentos específicos sobre os seus personagens”, escreve o designer, lembrando que se trata, sobretudo, de responder questões relacionadas aos personagens centrais de uma trama — aqueles com os quais você espera que o jogador desenvolva laços emocionais mais fortes e sólidos (admiração, raiva, espanto etc.). Em outras palavras, personagens que devem encontrar um desenvolvimento pleno ao longo da trama.
O baralho de tarô
Não, não se trata aqui de nenhuma analogia ou abstração. Chandler propõe, de fato, que a forja dos personagens tenha início com um baralho de tarô típico — aquele mesmo, com figuras como “Torre”, “Morte”, “Mago” etc. Descontadas as possibilidades mágicas atribuídas às cartas, parece ser possível jogar com diversas noções inconscientes utilizando o conjunto de símbolos ali presente.
“Trata-se de apreender os símbolos e seus diversos significados”, diz Chandler. “Por exemplo, para algumas pessoas, a Torre simboliza a queda do orgulho, ou um desastre iminente; o Mago indica certa motivação divina; e a Estrela sugere esperança ou desejo de imortalidade, e por aí vai.”
Um exemplo: o cientista Lennix
O designer sugere que se comece distribuindo três cartas para cada um dos personagens principais — levando-se em conta a ordem em que são dadas —, incluindo um bom exemplo que poderia servir a um jogo de ficção-científica.
“Imagine um cientista de nome Lennix. Nós damos três cartas a ele, as quais se revelam como a Estrela (esperança/imortalidade), o Mago (motivação divina) e a Torre (queda do orgulho/desastre). Talvez Lennix veja na tecnologia a última esperança humana, uma forma com que os seres humanos podem transcender sua mesquinhez e intolerância.
“Por meio da ciência, ele espera acelerar a evolução dos seres humanos, levando-nos a um estágio elevado de consciência. A sua missão termina em falha, resultado direto do seu orgulho. Talvez os seus experimentos resultem em morte (ou coisa pior), ou talvez ele seja descoberto e expulso.
“Dessa forma, Lennix é conduzido pela culpa. Ele sabe o que gostaria de alcançar e sente que estava errado e que aprendeu uma lição. Ou ele pode se sentir frustrado e talvez continue seus experimentos em segredo.”
Naturalmente, trata-se apenas de um exemplo. De fato, Chandler reforça que o resultado poderia ser totalmente diverso se, por exemplo, a ordem das cartas fosse outra. “Lennix poderia ter experimentado alguma catástrofe pessoal (Torre) (...). Ele pode ter perdido sua fé na ciência (Estrela), embora tenha encontrado recentemente uma nova fé (Mago)”. Por fim, também é possível, é claro, que você crie o seu próprio baralho de “tarô”.
Faça seus personagens dialogarem
Grande parte do que define um personagem de jogo se encontra na sua forma particular de se expressar por meio de palavras. Nisso se incluem tanto chavões e vocabulário quanto dicção, sotaque e a forma única como ele estrutura suas frases. “Tudo isso vai transmitir à audiência muito sobre a personalidade do personagem que você está criando”, escreveu Chandler.
Uma sugestão? Desenvolva diálogos hipotéticos entre os personagens principais do mundo de jogo. Embora isso dificilmente vá parar nas linhas finais do roteiro, deve ser possível coletar um grande número de insights não apenas em relação à psique de cada um como também em relação à forma como eles se relacionam. “Trata-se de um exercício de escrita”, ele diz.
Um bom início pode ser um tópico central no seu mundo de jogo. “Deixe que eles conversem conforme você escreve — primeiro na voz de um, depois na de outro. Gradualmente, conforme eles falam, você passará a vislumbrar diferenças entre eles.” Aos iniciantes, Chandler sugere ainda que a prática se inicie com personagens de ideologias opostas, de forma que haja um embate de perspectivas.
Aliados não são sempre amistosos entre si
Vale lembrar, entretanto, que as conversas entre heróis não precisam, necessariamente, ser amigáveis. “Ao final de Rainbow Six: Lockdown”, lembra Chandler, “dois dos contraterroristas entram em uma discussão acalorada sobre como lidar com um grupo de terroristas que estão enfrentando. Ambos tem a mesma meta em mente, mas eles discordam em como lidar com a situação crítica (...).”
Igualmente, o designer lembra que alguns dos melhores diálogos (tanto de jogos quanto de filmes) ocorrem entre antagonistas.
O dilema
Uma das formas mais essenciais de infundir vida a um personagem recém-criado deve ser confrontá-lo com situações dilemáticas — aquelas em que não há uma escolha fácil ou realmente correta.
“O ‘dilema’ trata de descrever as várias formas como um personagem pode reagir a situações estressantes. Trata-se de um dilema insolúvel de algum tipo, uma situação hipotética ocorrida no mundo de jogo que você está criando.” Trata-se, portanto, de jogar cada um dos personagens em uma situação de crise — da qual nenhum deles deve sair sem arranhões (físicos ou psíquicos, por assim dizer).
A rede de contatos
De acordo com o designer, o último passo para conferir vida ao seu personagem diz respeito, essencialmente, à forma como ele se relaciona com os demais personagens do jogo — tanto os centrais quanto o “elenco de apoio”, vale dizer.
“A rede de contatos é utilizada para definir as relações interpessoais no seu jogo”, escreve Chandler no referido artigo. “A ideia é criar a sua própria teia, um fluxograma que mostre como os personagens principais da trama veem uns aos outros” — no que se incluem afeições, animosidades e mesmo os vários estratos possíveis desses sentimentos.
Chandler lembra ainda que um único personagem pode ter mais de um diagrama de relacionamentos — digamos, um profissional e outro pessoal, sendo que um mesmo personagem com quem ele se relaciona pode aparecer em ambos. Por fim, vale considerar também os vários níveis de relacionamento emocional possíveis, desde o mais superficial até o mais entranhado (talvez inconsciente).
Personagens com vida própria
Bem, ao final, embora ainda não possua nada de “concreto” em relação ao seu novo jogo, é provável que você já tenha em mente alguns personagens que parecem ter vida própria. Ou, quem sabe, você tenha a sua própria sequência de passos para atingir objetivo semelhante — ou simplesmente não dá a mínima para isso, preferindo simplesmente se deliciar com uma boa trama desenvolvida por outra pessoa.
Ao final, talvez o que realmente importe seja encontrar um personagem cuja existência possa mesmo fazer esquecer tanto as questões gráficas quanto o passo a passo que levou ao seu nascimento.
Fontes
Categorias