Quando analisamos um game para o Voxel, é comum nos depararmos com momentos da história ou questões de gameplay que determinam ou mudam nossa impressão sobre um jogo. No entanto, na hora de elaborar o review, não podemos nos aprofundar muito nesses pontos, já que isso pode estragar a experiência de quem ainda não jogou.
Pensando nisso, decidimos criar um novo quadro conhecido como “Sessão Spoiler” — nome que pode mudar dependendo do seu feedback. Nele, queremos inserir discussões mais aprofundadas sobre nossas experiências com direitos a comentários sobre pontos específicos que não caberiam muito bem em uma análise convencional.
Em outras palavras, a intenção é ter uma conversa diferente, na qual spoilers da trama são permitidos e avisados desde o início. Para estrear esse novo quadro escolhemos A Plague Tale: Innocence, jogo de estreia do estúdio Asobo que recebeu uma análise completa publicada no início desta semana.
Contradições constantes
Conforme afirmei anteriormente, para mim A Plague Tale: Innocence é um game construído por duas metades muito bem definidas e que, no fim do dia, são contrastantes entre si. No começo, o game deixa claro que, diante da Inquisição e da infestação dos ratos, somos elementos frágeis e que não tem nenhum impacto sobre o que está acontecendo.
Durante as fugas e momentos de furtividade, o jogo passa bem fortemente a mensagem de que não somos heróis: o único objetivo é a sobrevivência, o que envolve passar desapercebido pelos ambientes e encontrar um lugar que não deixe pistas de nossa presença. E toda a construção de universo feita nos momentos iniciais é bem-sucedida nesse sentido: Amicia tem só uma atiradeira e não pode fazer muito barulho e ainda tem que proteger Hugo, que está ali como algo que a atrasa e pode denunciar sua posição.
Enquanto essas regras permaneceram em jogo, A Plague Tale: Innocence se mostrou um game muito agradável. O gameplay furtivo não era exatamente complexo, mas funciona bem o bastante para sentir a urgência e a consequência dos meus atos. Também ajudou muito que falas bem construídas e cenas não interativas conseguem mostrar bem o estranhamento entre os irmãos e como, aos poucos, eles se aproximam e veem um no outro suas únicas chances de dar sentido a um mundo em colapso.
Meu problema com o game começa justamente quando chegamos no ponto em que o objetivo parece ter sido finalmente alcançado e os irmãos encontram um lugar seguro e longe dos olhos da Inquisição. A partir desse momento, a trama começa a explorar mais seu lado sobrenatural e tem uma resolução de roteiro que não me pareceu nada condizente com a proposta inicial.
Eu sei, outros títulos que começam com a furtividade em mente já brincaram com isso e trouxeram momentos finais nos quais o jogador é empoderado e vence as ameaças a seu redor. De certa maneira, Metal Gear Solid, um dos bastiões do gênero, é marcado por momentos do tipo, nos quais você deixa esconderijos de lado e usa lança-mísseis, granadas e metralhadoras para matar chefes.
No entanto, sinto que A Plague Tale: Innocence não conseguiu construir tão bem essa transformação a ponto de isso ser algo convincente — algo que consigo atribuir à curta duração do jogo. É muito estranho pensar que, em questão de poucos dias, Amicia passa daquela jovem que morre de medo de seus perseguidores para alguém que, com uma atiradeira e alguns tipos diferentes de munição, consegue sozinha derrotar exércitos inteiros.
Eu sei, outros títulos que começam com a furtividade em mente já brincaram com isso e trouxeram momentos finais nos quais o jogador é empoderado
Também não ajuda o fato de que o jogo encoraja esse tipo de comportamento. Teoricamente, dá para continuar sendo furtivo, mas não faz muito sentido apelar para isso quando você pode limpar o cenário de inimigos e procurar com mais calma itens para fazer upgrades. Quando parece que um desafio novo vai surgir, logo a solução surge — tem um inimigo com capacete? Não se preocupe, seu aliado vai aparecer com uma fórmula para você derreter a proteção e continuar a matança.
Isso faz com que a tensão legal que o jogo carrega no início vá embora rapidinho e nunca mais retorne. Se ao menos em troca tivéssemos uma boa experiência de ação como substituta, as coisas poderiam ficar bem, mas os sistemas de A Plague Tale são, no máximo, medianos. Os inimigos são burros e a mira é tão automática nas configurações normais que morrer é mais questão de desatenção do que fruto de desafio.
E esse roteiro?
Outro elemento que, a meu ver, não contribuiu muito para A Plague Tale: Innocence, foi a mudança de foco do roteiro. A partir do momento em que decide focar na doença de Hugo e explicar seus elementos, ele vira uma jornada sobre “o escolhido” e como as forças malignas querem usar seu poder para seus próprios objetivos.
Desde o começo fica claro que o garoto tem um papel bem importante e que ele está ligado ao que estava acontecendo. No entanto, senti falta de explicações melhores para a ligação entre eles e os ratos e como toda essa questão de “ciclos que se repetem” entra na história em geral — me pareceu que alguns rastros para explicações até foram deixados, mas nunca foram propriamente desenvolvidos.
Não estou dizendo que queria uma explicação pseudocientífica ou mística para tudo, já que isso poderia só complicar ainda mais as coisas. Mas, da maneira como as coisas foram apresentadas, me pareceu que o roteiro recorreu à tática do “ele é o escolhido e ponto”, algo que não me foi muito satisfatório.
Também achei equivocada a decisão de apresentar um vilão que é “mal porque sim” e que está usando a Inquisição para suas maquinações pessoais. Ele pareceu uma tentativa de o jogo ter seu próprio “Imperador Palpatine”, com direito a tentativas de “seduzir o escolhido” com as promessas de que ele seria o único capaz de educá-lo sobre suas verdadeiras capacidades.
Também achei equivocada a decisão de apresentar um vilão que é “mal porque sim”
Para coroar esses momentos nos quais os vilões tomam o controle, temos duas batalhas finais que me pareceram bem descartáveis. Enquanto a primeira, contra Nicholas, traz ao menos a catarse de finalmente estarmos enfrentando quem nos perseguiu desde o início do jogo e matou nosso pai, o fato de ela ser vencida explorando o fato de que a inteligência artificial “esquece” onde você está depois de correr um pouco foi bem decepcionante.
E daí chegamos ao “confronto de ratos” final, no qual o grande vilão mostra que também um adepto em controlar as criaturas graças a transfusões de sangue — o que joga por ralo toda a teoria do “escolhido”. Não só senti que o roteiro de A Plague Tale não pedia uma “batalha contra chefe” tradicional, como a maneira como ela é conduzida elimina o último fiapo de comprometimento que o game tinha com algum realismo histórico.
Bora conversar?
A intenção deste artigo não é falar que somente eu “entendi” A Plague Tale: Innocence ou que minha opinião é a única possível sobre ele. O objetivo é ampliar pontos que não pude tratar com total liberdade na análise publicada pelo Voxel e abrir um diálogo com o pessoal que gostou muito do game — algo que, admito, gostaria de também poder dizer.
Nossa seção de comentários está aberta para você registrar sua opinião sobre o jogo e, porque não, dizer que eu estou completamente errado e perdi elementos que ele deixa claro. No futuro, queremos usar essa sessão para discutir sobre finais interessantes e elementos legais, mas que não cabem em uma análise ou artigo. E claro, sinta-se à vontade para sugerir um nome mais interessante para esta coluna em suas encarnações futuras.
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