Nesta segunda-feira (4), uma notícia abalou a indústria gamer e, em especial, os fãs de emulação e preservação de jogos. A primeira delas foi o encerramento do Projeto Yuzu, um dos emuladores mais famosos de Nintendo Switch, ocorrido após a intimação legal da gigante japonesa — você pode ler mais sobre o caso neste link!
A segunda delas, no entanto, não poderia ter um timing mais irônico: um grupo de brasileiros anunciou uma plataforma com jogos piratas, no maior estilo Steam, incluindo até mesmo as conquistas! Nomeado "Launcher Ecológica Verde", o projeto foi revelado no último domingo (3), tem base no X (ex-Twitter) e já acumula mais de 100 mil seguidores.
Em fase de testes, sem fins lucrativos e mantido por doações de usuários, o Launcher Ecológica Verde facilita o acesso do usuário a links para o download de jogos por torrent — e ainda conta com suporte técnico voluntário. No catálogo, há jogos para diversas plataformas, incluindo o próprio Switch. Naturalmente, a prática, a princípio bem-intencionada, cruza a linha da legalidade e pode ser penalizada até mesmo como crime.
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Dessa maneira, a fim de obter mais informações sobre o projeto e a segurança de seu uso, o Voxel entrou em contato com o fundador do projeto — que preferiu manter o anonimato — através de sua comunidade oficial no Discord. Confira a entrevista, na íntegra, a seguir!
A origem da Steam Verde
O criador da Ecológica Verde afirmou que a motivação para criar o projeto, apesar do risco, é bem familiar para muitos internautas — a falta de dinheiro para adquirir um novo jogo. Ele também contextualizou os riscos prévios em obter as cópias das obras: "quem foi atrás [de jogos pirateados] e não soube como verificar [ameaças digitais], ou algo do tipo, simplesmente acabava pegando um malware, ransomware ou keylogger".
Pensando na segurança do processo, ele decidiu agir: "com base nisso e na falta de alguém que fizesse, criamos o projeto, com o primeiro nome sendo "Steam Verde", explicou. Segundo o criador, o projeto trata-se de uma iniciativa para redirecionar os usuários para "links verificados e de repackers confiáveis na cena" do desbloqueio de jogos. Ele explica que, dessa maneira, o grupo "tira parte do peso legal, caso ocorra algum tipo de processo".
"O objetivo do projeto é evitar que os usuários peguem vírus ao buscar jogos piratas"
Priorizando a liberdade de seu usuário, o fundador afirma: "A filosofia do grupo é a democratização do lazer, que, em tese, é um direito constitucional", explica, "mas por conta de altos impostos e preços abusivos, acaba não sendo possível de se ter", ele infere. Apesar de controversa, a fala da Ecológica Verde tem base nos dados de consumo de obras pirateadas no Brasil.
Dados divulgados pela Akamai em 2022 apontam que o Brasil é o quinto país no mundo que mais consome conteúdo pirateado. Ao todo, foram 4,5 bilhões de acessos entre janeiro e setembro de 2021, um número que pode ser amplamente discutido junto dos impostos e taxas inerentes à indústria do entretenimento. Neste mesmo contexto, destaca-se também o aumento no preço dos streamings e dos serviços de jogos, que anteriormente contribuíram para diminuir o consumo de conteúdos ilegais em quase 60% entre 2018 e 2023.
Enquanto os planos acessíveis nos serviços de streaming desincentivam a pirataria, como era o caso do Xbox Game Pass antes do aumento de preços, seu encarecimento torna a opção ilegal mais atraente para as classes financeiras menos abastadas. Com o salário mínimo estipulado em R$ 1.412 e até 78% das famílias em inadimplência no Brasil, segundo dados do Governo, investir R$ 300 à vista em um jogo de PlayStation 5 é algo difícil de digerir para muitos jogadores.
Apesar dos gráficos, novos jogos Triple A têm chegado com cada vez menos conteúdo, e preços exorbitantes.
Considerando justamente esse cenário, o criador da Ecológica Verde define a atuação do grupo de maneira positiva: "Talvez, [seja] a felicidade de um [trabalhador] CLT-médio apaixonado por games," ele sugere, "um lugar onde as pessoas podem baixar seu jogo e conseguir relaxar com ele". Porém, apesar da abordagem neste caso ser aparentemente inofensiva, a prática da pirataria costuma ser uma das vias mais tradicionais de amparo a outras atividades ilicítas — especialmente no crime organizado.
Reforçando a despreocupação com lucros, o fundador afirma em conclusão "todo o dinheiro arrecadado para o projeto, vai para o projeto," reitera, "há até meses que pegamos o dinheiro e doamos integralmente para a caridade, como aconteceu no Natal Verde".
Ecológica Verde, a Lei e a segurança do usuário
Ao ser questionado sobre como o grupo lida com a questão da pirataria perante a Lei dos Direitos Autorais, o fundador afirma que apenas fazem uma curadoria dos links, que são redirecionados de sites de terceiros e não associados.
De todo modo, na eventualidade de um processo, o Ecológica Verde conta com medidas de segurança similares às presentes no caso do The Pirate Bay: "O projeto possui diversas planilhas criadas pela comunidade, que não são afiliadas a ele, com o redirecionamento desses links". O criador afirma: "mesmo que o projeto acabe por conta de uma empresa, teríamos outro meio em que o gamer pobre conseguiria jogar".
Mesmo após ser retirado do ar nos Estados Unidos, o The Pirate Bay continuo ativo através de outras URLs.
Considerando o aparente apoio da comunidade, perguntamos ao fundador se o público está desconfiado na hora de realizar os downloads. Ele explicou: "Somos transparentes nas questões [de seleção] dos jogos," afirma, "Somente pegamos jogos de lugares presentes em uma megathread do Reddit, e ainda o verificamos usando o Virus Total, além de outros meios". Segundo ele, junto da boa comunicação com a comunidade, esse fator garante "um nível elevado de confiança".
Citando alguns dos grupos que "fornecem" os jogos piratas, ele inclui: Eggmulator, Online-fix, Dodi Repacks, Fitgirl, Vimm's Lair, CD Romance, Elamigos e Gamedie. "Todos presentes na megathread citada acima," explica o criador.
Os Verdes contra os Vermelhos?
Tradicionalmente, a Nintendo é conhecida por encerrar, sem piedade, qualquer projeto que ameace sua soberania sobre suas obras — dos jogos feitos por fãs, aos emuladores e mods, nada passa despercebido. Possuindo jogos da gigante japonesa em sua "curadoria", a Ecológica Verde se coloca como alvo de uma mira bastante letal.
O criador comenta sobre o risco: "todo mundo tem medo da Nintendo," afirma sem delongas, "então, qualquer ação dela ela é uma ameaça". Para evitar problemas com a Big N, ele explica algumas medidas que o grupo implementou, além de não utilizar links próprios: "sempre ter censura quando há nomes de franquias dela," pontua, "No nosso caso usamos figuras públicas para censurar, como o Kanye West".
"Todo mundo tem medo da Nintendo"
Intencionalmente ou não, essa medida do Ecológica Verde acaba gerando situações bastante cômicas. Tomando, por exemplo, a arte a seguir ilustrando um dos episódios mais infames na cultura pop, a rivalidade entre o rapper Kanye West e a cantora Taylor Swift.
Kanye vs. Taylor Swift, por Ecológica Verde.
Apesar de cômico, memes como esse, se associados à práticas ilícita e com fins lucrativos, podem perder o princípio da insignificância e acabar implicando em outros problemas maiores. Entre eles, há a possibilidade danos morais e materiais, conforme previsto no artigo 24 (IV) e artigo 28 (VI e VII) da Lei 9.610 — falaremos mais sobre ela, logo a seguir.
Afinal, isso é mesmo pirataria de jogos?
No Brasil, a lei que define a pirataria é a dos Direitos Autorais, a Lei 9.610/1998. Se sua proposta já não estava atualizada o suficiente para deter o compartilhamento de MP3s nos anos 2000, certamente não está preparada para lidar com o amplo compartilhamento de conteúdo paralelo na Era dos Streamings.
O texto da Lei dos Direitos Autorais define os seguintes cenários quando há violação:
Violação de Direitos Autorais:
- Pena: Detenção de 3 meses a 1 ano ou multa.
Violação com Intuito de Lucro:
- Reprodução total ou parcial para lucro direto ou indireto.
- Pena: Reclusão de 2 a 4 anos e multa.
Distribuição, Venda e Introdução no País:
- Violação com intuito de lucro direto ou indireto.
- Pena: Reclusão de 2 a 4 anos e multa.
Oferecimento ao Público com Intuito de Lucro:
- Violação através de cabo, fibra ótica, satélite, etc.
- Pena: Reclusão de 2 a 4 anos e multa.
Exceções e Limitações:
- O disposto nos parágrafos 1, 2 e 3 não se aplica em casos de exceção ou limitação ao direito autoral, conforme a Lei nº 9.610/1998.
Cópia para Uso Privado:
- Cópia única de obra intelectual ou fonograma para uso privado, sem intuito de lucro direto ou indireto, não se enquadra nas penalidades mencionadas.
No caso da Ecológica Verde, não há exatamente uma previsão na Lei dos Direitos Autorais, já que o grupo não é responsável por violar os sistemas anti-pirataria nos jogos, e nem por sua disponibilização direta na internet. Há, contudo, uma curadoria e facilitação ao consumidor brasileiro, sem finalidade lucrativa direta ou indireta — mas de relativa significância, já que pode receber milhares de visitas todos os meses.
Por estar em uma linha tênue e pressupostamente cinza, caberia a análise mais precisa de um jurista em caso de um processo contra a Ecológica Verde. Por outro lado, há de se notar que, de todo modo, o download de conteúdos piratas ainda é considerado crime, independente da origem — mas sua penalização, na maioria das vezes, se dá apenas a quem comercializa as obras ilegalmente.
A falta de atualização na Lei dos Direitos Autorais, junto da crescente gentrificação no acesso de cultura e lazer digital no Brasil, torna sua interpretação uma tarefa delicada — e, por vezes, inacessível. Frente ao temor de grandes processos, como o recente caso da Nintendo, práticas como as do Ecológica Verde tem sido cada vez mais desincentivadas. Isso se reflete até mesmo na raiz dos desbloqueios de jogos, com os principais agentes da cena hacker abandonando as atividades.
A pirataria também popularizou versões amplamente modificadas de jogos famosos, como GTA San Andreas. (Fonte: Nobreza Games / YouTube)Fonte: Nobreza Games / YouTube
Por consequência, isso levanta outra importante questão, acerca da preservação de jogos digitais. Para muitos jogadores, esta geração de jogos pode ser a primeira a ter títulos completamente inacessíveis, já que depende de serviços onlines e servidores para funcionar. Versões antigas de jogos famosos são frequentemente substituídas por "lançamentos refeitos" nas lojas digitas, que costumam vir abarrotados de problemas — como o caso de GTA Trilogy.
Nesse cenário, que também se estende a masterizações de filmes e músicas, a pirataria e os colecionadores são as principais frentes — ainda que estes últimos sejam responsáveis pelo encarecimento das mídias analógicas. Mesmo sendo o meio mais legítimo de obter obras originais e já datadas, adquirir versões autênticas e originais é algo caro e muito limitado, especialmente em mercados jovens como o Brasil.
"De certo modo, a pirataria já é preservação" — Fundador da Ecológica Verde
Quando questionado sobre como se vê no projeto Ecológica Verde, sendo um conservador ou pirata, o criador respondeu: "Eu considero [ que seja] mais preservação, muito jogo que a gente postou nem dá mais para comprar," ele explica. Ponderando, ele acrescenta: "de certo modo, a pirataria já é preservação". A afirmativa parece ser compartilhada por muitos outros internautas, e é especialmente relevante para softwares abbandoware ou mídias perdidas.
Launcher da Ecológica Verde e o futuro do projeto
Sem previsão de abandonar o barco, o fundador do Launcher Ecológica Verde parece otimista e tem planos para o desenvolvimento da plataforma. Segundo ele, o software é leve e gasta apenas "um pouco mais do que o Gerenciador de Tarefas" do Windows.
Até o momento, o Launcher da Ecológica Verde funciona como uma frente para o site do projeto, apenas direcionando os usuários para os links — uma espécie de aplicativo-blog, simplificando a grosso modo.
Launcher da Ecológica Verde funciona como um "leitor-de-blog".
Ainda que caminhe numa tênue linha cinza perante os parâmetros legais, o projeto Ecológica Verde repercute em alto e bom tom os problemas ligados à precificação do acesso à cultura e ao lazer. A discussão torna-se ainda mais delicada ao considerar os prejuízos provocados pela prática, que podem causar danos financeiros massivos a pequenos e médios desenvolvedores.
Sem incentivos financeiros para adquirir novos jogos fora de promoções, especialmente os lançamentos multiplayer, a maioria dos gamers brasileiros acaba "ficando de fora" de muitas comunidades on-line. Até o estabelecimento de medidas que permitam a redução dos títulos no Brasil e que promovam a inclusão digital, a luta contra a pirataria será ciclíca e andará de mãos dadas com a economia nacional.
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