Você já deve ter visto estúdios cometendo erros estratégicos e comerciais, mas a Arc System Works, uma produtora japonesa liderada por um africano, transformou uma decisão equivocada em algo muito maior e com muito mais desdobramentos do que qualquer um esperava. Basicamente quando finalmente encontrou o caminho do sucesso, o estúdio perdeu sua principal franquia para a SEGA de uma maneira completamente bizarra, e as consequências disso são realmente surpreendentes.
Para entender a história da Arc é preciso antes entender que a relação entre ela e a SEGA é muito mais antiga. Na verdade, uma dessas empresas só existe por causa da outra.
Em 1988, Minoru Kidooka queria começar o ano com uma vida nova, ele trabalhava no setor de engenharia de hardware da gigantesca SEGA e decidiu deixar a empresa para fundar sua própria companhia, nascendo em 12 de Maio daquele ano a Action Revolution Challenge Corporation, mais conhecida por sua abreviação, a Arc. Ele imediatamente foi atrás de outros funcionários da SEGA para tirá-los de lá e contratá-los para seu próprio estúdio de games, pois ele tinha um plano.
Logo da Arc System Works feito por Hideyuki Anbe, um programador do Guilty Gear.Fonte: Arc System Works
A jogada de mestre de Minoru foi perceber que o mercado de arcades e consoles estava em constante expansão na época, por tanto as grandes empresas do ramo iriam precisar de estúdios de suporte para adiantarem os ports dos jogos delas para as várias plataformas de games que estavam surgindo no mercado, por isso eles teriam grande vantagem nesse mercado, deixando de serem funcionários para serem chefes. E foi assim que a Arc começou a crescer. A empresa firmou contratos com grandes marcas como a própria SEGA, Bandai e a Namco (que naquele tempo eram separadas) e logo mudou seu nome para Arc System Works começando também a fazer seus próprios games, como o clássico jogo Bishojo Senshi Sailor Moon S: Jogai Ranto!? Shuyaku Sodatsusen, também conhecido como "Sailor Moon de Super Nintendo", que embora seja completamente quebrado, possui uma cena competitiva até hoje.
Porém o primeiro grande salto da empresa aconteceu em 1995 quando um jovem universitário sul-africano pediu pessoalmente para o presidente da ArcSys para ingressar na companhia como desenvolvedor. Esse jovem é Daisuke Ishiwatari, nascido em Johanesburgo, onde estudou até o segundo ano do equivalente ao ensino médio lá, porém se mudou para o Japão e lá decidiu mudar toda sua vida. Seu sonho era fazer de tudo um pouco, por isso escolheu a indústria dos games para trabalhar, por entender que ela seria mais flexível, e esse papo parece ter agradado o minúsculo estúdio Arc System.
O presidente da companhia, Minoru, ficou feliz com a conversa com o jovem e o contratou já no dia seguinte. Ishiwatari rapidamente fez de tudo para que um amigo de classe do equivalente a faculdade no Japão, Toshimichi Mori, fosse também contratado e juntos começaram a fazer a história. Cerca de um ano depois de entrar na empresa, Ishiwatari mostrou ao presidente Minoru um projeto que ele estava planejando desde quando ainda era um estudante: algo similar a Street Fighter, só que com apelo visual não só para os jogadores de jogos de luta, mas para os amantes de animes também. Nascendo em 1998 o clássico Guilty Gear: The Missing Link, um jogo em 2D para o Playstation, um console 3D, mostrando a vontade de ir completamente na contramão do mercado. O maior lançamento da companhia e também a origem de todo o problema.
Como a Arc System era um estúdio muito pequeno na época, ela precisava de alguma empresa para ser publisher e assim financiar, divulgar, distribuir, fazer os discos de Playstation 1 e tudo mais por ela em todo o mundo, foi então que surgiu uma companhia chamada Sammy Corporation, especializada em pachinkos, os famosos caça-níqueis, que estava investindo para tentar se tornar uma grande publisher de games algum dia, mas que estava ainda muito longe disso. Então uma parceria foi criada, já que ambas empresas queriam crescer no mercado, nada melhor do que fazer isso juntas e em harmonia, não é? A iniciativa deu muito certo. Guilty Gear foi muito bem recebido e todo mundo ficou bastante feliz e com dinheiro no bolso, mas a vida é uma caixinha de surpresas.
Sabe quando você toma uma decisão burra, mas tão burra que você sabe que ela muda sua vida pra sempre e você se arrepende pouco depois da decisão que tomou, se lembrando dela por muitos anos? Todo mundo tem esses momentos que assombram a vida da gente, e quem não tem, é porque ainda vai ter, e isso aconteceu com a Arc System Works inteira.
No fim dos anos 90, a gigante dos pachinkos Sammy ofereceu um novo acordo para uma parceria para os próximos jogos da franquia Guilty Gear, só que talvez pela inexperiência, falta de atenção ou até por querer mesmo, a Arc System assinou um contrato que cedia os direitos não só de publicação dos jogos em questão, mas de tudo da série ligado a eles, como história, personagem, nome e o que mais que fosse criado nesses jogos. Tudo automaticamente passaria para a Sammy e a Arc System assinou isso, praticamente dando de graça Guilty Gear e quase tudo que foi criado por Ishiwatari desde seus tempos de estudante.
É bem verdade que muitos estúdios sem dinheiro aceitam ceder os direitos de um projeto novo para poder receber financiamento da publisher para produzi-lo, mas fazer isso depois de já ter feito um lançado bem sucedido do game não fazia muito sentido, pois ao invés de usar a franquia para lucrar, a Arc só receberia praticamente apenas o valor para financiar a produção e os lucros mais substanciais iriam todos para a Sammy, agora dona dos direitos. Um péssimo acordo, completamente inseguro e amador com uma empresa que mal tinha acabado de abrir um escritório próprio para tentar ser uma grande publisher de games no futuro. A Sammy poderia a qualquer momento desistir de tudo e vender os direitos para qualquer outra empresa e dane-se a Arc System, por exemplo.
Principal ramo da Sammy Corporation no fim dos anos 90Fonte: Getty Image
Com isso não só os jogos Guilty Gear X e XX não eram da ArcSys, como também a história deles, sprites e até personagens importantíssimos para a continuação da franquia como Dizzy, Robo Ky e I-No, além de outros favoritos do público como Slayer, Johnny, Anji Mito e vários outros, e embora a Arc System e seus funcionários se recusem a falar oficialmente sobre o caso até hoje, ao que tudo indica eles não sabiam disso. O único que comentou sobre anos depois foi o próprio Ishiwatari em uma entrevista a Gamasutra, onde se limitou a dizer que é verdade que os direitos estavam com outra empresa, mas se recusou a dar maiores detalhes, por motivos óbvios. As informações só vieram a público através de vazamentos quando tudo começou a piorar, porque afinal, tudo sempre pode piorar.
Entre 2003 e 2004, a Sammy começou a comprar a SEGA até adquiri-la por completo, criando a SEGA Sammy Holding. Com isso a nova companhia queria aproveitar a experiência e posicionamento de mercado da SEGA para fortalecer os negócios, e como a divisão da Sammy que funcionava como publisher era relativamente nova, suas atribuições passaram para a SEGA, só que o foco principal da companhia estava muito mais para o mercado interno japonês de arcades e pachinkos do que em distribuir e divulgar games pelo mundo gastando alto em apostas comerciais, com isso custos estavam sendo cortados, estúdios e escritórios fechados, e o inevitável aconteceu: a SEGA decidiu que não iria mais publicar a franquia Guilty Gear.
Isso não queria dizer que a Arc poderia voltar a ter comando da franquia, muito pelo contrário, isso praticamente significou o fim dela. Basicamente a Arc System Works poderia continuar lançando atualizações para os jogos que já estavam no mercado, mas ela teria que se virar para pagar os custos de uma publisher e ainda creditar e pagar para a SEGA as porcentagens de lucro da Sammy já que ela quem tinha os direitos dos jogos. Imagine a problemática em que a Arc System se meteu.
Com isso, a Arc System começou a tentar fazer dinheiro de qualquer forma, lançando diversas atualizações pagas para os Guilty Gear da Sammy e criando jogos menores, aproveitando o dinheiro que a própria SEGA deu a ela para fazer o jogo de luta de Hokuto no Ken para Playstation 2, mas isso não quer dizer que as coisas entre as duas empresas estavam bem. Nenhuma das várias tentativa de conversar com a SEGA sobre os direitos de Guilty Gear deu certo, não importava o que a ArcSys tentasse.
Mas como ela não queria desistir de sua principal série, decidiu fazer sua tentativa para tentar salvar a franquia e continuar sua história: lançou em 2007 Guilty Gear 2: Overture mudando completamente o estilo de gameplay da franquia, deixando de ser um belo jogo de luta no estilo anime para ser um Mussou onde você deve derrotar hordas de inimigos para seguir em uma história linear. Um game completamente diferente do que os fãs esperavam de um novo Guilty Gear, resultando em um enorme fracasso, falhando na missão de dar lucro e colocando a empresa em mãos lençóis.
O desenvolvimento do projeto foi extremamente prejudicado não só pela Arc não ter dinheiro para fazer algo realmente como ela queria, como também pela equipe não poder usar vários dos personagens importantes da história que eram de propriedade da SEGA-Sammy, sendo obrigada a criar novos, esquecer vários outros e até fazer malabarismos jurídicos como dizer que o homem que aparece no final de XX, se chama “Aquele Homem” ou chamar Dizzy de “Dama do Bosque” ao invés de usar o nome dela e mostrá-la no jogo, tudo para não infringir os direitos autorais dos personagens que eles mesmos criaram. Foi por isso que a Arc System decidiu mudar tudo, e essa mudança sem querer respingou até na Capcom e na história dos jogos de luta.
As primeiras mudanças foram bem radicais: Guilty Gear foi colocado oficialmente de lado, deixando de gerar lucros para eles, mas também para a SEGA, com Ishiwatari prometendo aos fãs de que um dia o game iria voltar. A ArcSys também passou a aprender na marra a se tornar publicadora de seus próprios games na Ásia, custe o que custar, tentando assim depender cada vez menos de terceiros para lançar seus jogos. Além disso, decidiu começar tudo do zero no desenvolvimento de games. Foram mudanças completamente radicais que marcaram o novo momento da empresa, e um símbolo dessas mudanças era a nova forma de pensamento sobre projetos: dois projetos de novos jogos de luta foram aprovadas para serem produzidas simultaneamente, um teria que ser um game 3D de luta da Arc, que é o que estava na moda na época, e o outro teria que ser um fighting game em 2D clássico, que era a essência da empresa e que ela sabia fazer de melhor. Assim as chances de pelo menos algum dos dois dar certo seria maior. Porém uma exigência muito específica foi feita: as versões de fliperamas teriam que ser feitas para as placas da Taito, a maior concorrente da SEGA. Por motivos óbvios.
O jogo 2D foi produzido e dirigido por Toshimichi Mori que só tinha uma missão: copiar o amigo Daisuke Ishiwatari em quase tudo e fazer um jogo para substituir Guilty Gear, sendo feito com as mesmas premissas, estilo gráfico e até cores dos protagonistas. A história também é basicamente a mesma da franquia irmã misturando poder centralizado, atos políticos, caçadores de recompensas e o plot da magia dominando o mundo. Nascia ali a franquia Blazblue e ela foi um sucesso instantâneo, até maior que Guilty Gear em sua estreia. Com isso a Arc System conseguiu voltar pros eixos, mas não parou por ai.
Muitos relançamentos, trabalhos pequenos e terceirizações no períodoFonte: Wikipedia
Pelos próximos anos, enquanto a Guilty Gear ficava esquecido e sem dar qualquer lucro para a SEGA, a Arc System Works começou a fazer diversos pequenos trabalhos para juntar dinheiro, até para a Capcom e Konami ela trabalhou, além de lançar dezenas de joguinhos simples e rápidos para Wii e portáteis para fazer a empresa arrecadar, se estruturar e ter dinheiro para assim concretizar seu objetivo principal. Com isso, somado ao sucesso das continuações e conteúdos relacionados a BlazBlue, em maio de 2011 o próprio Daisuki Ishiwatari, o amigo Toshimichi Mori e presidente Minoru Kidooka bateram na porta da SEGA com o dinheiro exigido em mãos e compraram de volta TODOS os direitos de tudo da franquia Guilty Gear; e já no dia seguinte registraram a marca e os direitos da franquia em nome de Arc System Works Corporation finalmente. O filho pródigo voltou para casa!
A atitude mudou a companhia para sempre. Alguns anos depois até repetiram a ousadia ao tirar do limbo a franquia clássica Double Dragon publicando um jogo da série e posteriormente comprando todos os direitos de jogos Tecmos Japan, criadora de Double Dragon, Kunio-Kun (Renegade no ocidente) e outras franquias clássicas, passando a publicar jogos novos delas regularmente e dando nova vida ao clássico.
A partir de então a empresa não parou mais de crescer, investindo muito internamente para se fortalecer como publisher, como estúdio de apoio e principalmente como produtora third party, sendo contratada para criar jogos de sucesso de diversas franquias como Persona 4 Arena para a ATLUS e Dragon Ball FighterZ para a Bandai Namco, além de iniciar franquias do zero como os elogiadíssimos Granblue Fantasy Versus para a Cygames e DNF Duel para a Nexon, tudo isso sem deixar de trabalhar nas IPs próprias, com destaque máximo para o aclamado Guilty Gear Strive, com milhões de cópias vendidas pelo mundo.
É curioso notar que essa notável mudança de qualidade visual nos trabalhos lançados se iniciou de uma maneira bastante peculiar. Lembra do tal jogo de luta 3D que a Arc estava fazendo junto de Blazblue? Aquele foi Battle Fantasia, que embora tenha sido um fracasso, possui uma história bem engraçada.
Ele foi feito por Emiko Iwasaki, a designer dos personagens de Guilty Gear. Só que para trabalhar nele foi um gigantesco problema. Como ela revelou em entrevista à Gamasutra, literalmente ninguém da equipe havia trabalhado com jogos de luta 3D antes e aquela era uma exigência da diretoria. O que salvou Emiko foi um estagiário recém contratado pela Arc System que havia recebido algumas poucas lições particulares nesse tipo de gráficos e a partir dele a equipe começou a construir e evoluir todo o sistema 3D da ArcSys usado até os dias de hoje. Os famosos “Gráficos de Guilty Gear”.
Por outro lado, a falta de experiência foi o que fez Battle Fantasia fazer história, pois como eles não sabiam fazer um jogo em 3D, eles fixaram os personagens posicionados e presos como se estivessem em um jogo 2D, que era o que eles sabiam fazer, criando o seu próprio estilo de gráficos, o 2.5D, que embora tivesse tentativas nesse estilo realizada por outros games no passado, nenhum tinha conseguido se firmar assim.
Após Battle Fantasia, esses gráficos são usados por praticamente todos os grandes jogos de luta lançamentos posteriormente, influenciando Mortal Kombat, The King of Fighters e o próprio Guilty Gear. Só que essa técnica só foi popularizada quando, em um teste público em fliperamas japoneses em 2006, um desconhecido desenvolvedor rival aproveitou de seu anonimato para espionar o que a Arc System estava fazendo de novo e após ver Battle Fantasia, ele decidiu copiar a técnica de gráficos 2.5D para criar o seu novo jogo. Aquele desenvolvedor era Yoshinori Ono, e foi assim que ele teve a grande inspiração para criar o gigantesco sucesso Street Fighter 4, mas essa já é história para outro artigo.
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