A informação de que The Last of Us (2013) seria transformado em produto de televisão foi anunciada em 2020 e causou grande ceticismo entre os fãs do game. Afinal, o histórico de adaptações de jogos eletrônicos não é bom, independente do formato.
Contudo, o lançamento no último domingo (15) da HBO tem tantos adjetivos positivos que consegue quebrar essa maldição, certamente marcando uma nova era das adaptações de games. O TecMundo assistiu a primeira temporada completa do show e você confere a seguir a nossa análise sem spoilers!
É parecido com o jogo?
Como a franquia já é bastante conhecida pelo público gamer, convém começar falando sobre esta perspectiva. Neste ponto, é preciso dizer que praticamente tudo de importante do primeiro jogo está lá. Gostaria de entrar mais em detalhes, mas prefiro deixar que o leitor tenha essa experiência. Só digo que vocês podem esperar por momentos contemplativos, falas sobre o como era o passado e até um certo livro que serve de alívio cômico.
Isso posto, as surpresas são bastante pontuais (uma delas é em relação aos infectados) e funcionam mais como um "corta caminho" no enredo do que necessariamente mudanças de rotas. Ou seja, elas estão lá para que o roteiro funcione melhor, e não para mudar o final. E isso faz sentido para a trama partindo do pressuposto que, como os cocriadores já disseram, a intenção foi contar a história e não o gameplay.
Eu não quero dizer, porém, que não há cenas que quase reproduzem a visão em determinados momentos da jogabilidade. Alguns takes são praticamente idênticos aos games e servem para dar mais imersão ao espectador que interage de maneira passiva com o formato de série.
Representações como estas estão na cena de quando Ellie (Bella Ramsey), Joel (Pedro Pascal) e Tommy (Gabriel Luna) estão fugindo de um carro logo após o outbreak do fungo Cordyceps (no primeiro episódio que foi exibido ontem). Essa transcrição também serve como uma homenagem à linguagem e identidade dos games, que por muito tempo foram considerados uma manifestação cultural de menor valor frente ao cinema, por exemplo.
Os diálogos importantes do jogo também estão praticamente todos presentes, sendo alguns reproduzidos ipsis litteris. Como o tom de toda a trama é majoritariamente dramático, as passagens causam arrepios não somente por nos lembrarem da experiência que tivemos jogando, mas também porque as falas são bem escritas.
A trilha sonora é outro fator que foi bastante reaproveitado e cada acorde tocado pelo argentino Gustavo Santaolalla causa novamente arrepios. Até mesmo coisas secundárias do game estão inseridas de forma bastante orgânica na trama, o que indica o cuidado e o respeito de Neil Druckmann e Craig Mazin com a obra original. A dupla soube muito bem não apenas passar a mensagem, mas também abraçar com carinho quem se importa com a história de Ellie e Joel há quase uma década.
Drama feito também para quem não joga
Além da qualidade que The Last of Us entrega para os já citados gamers, a série também é uma ótima produção para quem nunca encostou em um controle na vida. E vai ser este público que justamente move-se para elevar a franquia para outro patamar.
O programa tem todos os adjetivos que uma boa história deve ter: trama envolvente, personagens que você se importa, uma excelente construção de mundo e boa ambientação. Mesmo quem nunca ouviu falar do fungo Cordyceps vai conseguir se colocar naquelas situações e, mais importante, ter empatia pelos sobreviventes.
O contexto de pandemia que acabamos de viver expressa uma sensação esquisita de proximidade, ao mesmo tempo que não banaliza a distopia pela distopia. The Last of Us consegue se diferenciar de outras produções como The Walking Dead — talvez a produção mais popular do gênero — porque foca no micro e não no macro, e sabe que as grandes histórias nem sempre são contadas por pessoas que têm aspiração de salvar o mundo.
Mesmo a série explicando um pouco mais sobre como o Cordyceps saltou de insetos para humanos, os diretores e criadores entendem que esse é apenas o plano de fundo para falar de relações humanas sem fingir complexidade. Com isso, The Last of Us consegue fazer o espectador refletir sobre temas como paternidade sem ser piegas, sobre moralidade sem moralismo e sobre perspectivas quanto a bom e mau sem maniqueísmo tosco.
A produção também trata maravilhosamente bem a questão da diversidade, sem nenhum tipo de panfletagem. O terceiro episódio — que foca no personagem Bill — tem um dos enredos mais delicados e sensíveis que eu já vi nos últimos anos na televisão.
E nada na história funcionaria sem as incríveis atuações dos protagonistas. Pascal e Ramsey tem uma química inexplicável, que ressoam com Anna Torv (que interpreta Tess), Nico Parker (Sarah), Nick Offerman (Bill), Merle Dandridge (Marlene), Lamar Johnson (Henry), Keivonn Woodard (Sam) e todos os outros personagens que eles interagem ao longo dos nove episódios.
Vale a pena?
The Last of Us tem muitos mais predicados positivos do que negativos. Aliás, chega a ser difícil encontrar algo que poderia ser melhor ou pelo menos diferente. Neste quesito, é preciso confessar que o amor pela trama pode turvar um pouco a visão. Contudo, é possível elencar pelo menos um aspecto que particularmente não me agradou.
O exagero de efeitos visuais nas obras da cultura pop é algo que me incomoda. E mesmo com a evolução das técnicas e o crescimento desta indústria, para mim é inegável que as produções hollywoodianas estão sendo saturadas por elementos de computador em detrimento de efeitos práticos. Em The Last of Us, até mesmo ferimentos foram feitos utilizando a computação.
Incomoda perceber que maquiagens e próteses estão sendo substituídas por pontos de captura de movimento que serão transformados em efeitos visuais, que muitas vezes não entregam a mesma imersão para quem não se acostumou com o modelo Marvel de cinema (que gosto muito, mas também valorizo outras experiências). Sempre quando penso neste assunto, lembro como uma visão mais George Miller em Mad Max: Estrada da Fúria poderia fazer bem ao audiovisual.
Feito o breve desabafo — que não desabona a qualidade de The Last of Us —, é preciso dizer o quanto ela é uma série que consegue honrar o game e faz o mundo da trama original crescer de maneira bastante orgânica.
O “herói” Joel é um dos aspectos beneficiados pelo formato narrativo da televisão. Com bastante tempo de tela é possível ver o quanto o personagem não é mais aquele “durão” que passa por todos os acontecimentos sem praticamente nenhum reflexo. Na série, podemos perceber principalmente os efeitos psicológicos em uma pessoa que passa pelo tipo de coisa que ele passou.
Outro elogio bastante pertinente deve ser feito à fotografia. Além de um belo trabalho na paleta de cores, que transparece para o espectador o drama de se viver naquele mundo rígido e sisudo, há também belas homenagens ao jogo. Além da já citada cena do carro, há outros momentos que parecem recriações do jogo para confortar quem chegou até aqui por causa do projeto lançado lá em 2013, pela desenvolvedora Naughty Dog.
Ao assistir The Last of Us, um fã da franquia vai manifestar várias sensações diferentes, incluindo a felicidade de saber que esta história tão importante para nós está chegando para outros públicos. No caso de quem nunca encostou em um controle, The Last of Us mostrará que grandes histórias aparecem em qualquer mídia — inclusive no mundo dos games.
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