Hogwarts Legacy, a separação do artista e a fantasia do boicote

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Imagem: Reprodução / The Times

O universo de Harry Potter é um dos mais populares da cultura pop, e por anos ele foi quase que universalmente amado pelos leitores. Isso é, ao menos até a autora JK Rowling passar a usar as suas redes sociais para espalhar discursos e valores transfóbicos, o que naturalmente deixou muita gente confusa a respeito do que sentir ao se deparar com os produtos da marca.

Ontem (17) tivemos mais uma edição do programa State of Play, desta vez dedicado ao novo jogo Hogwarts Legacy, que promete ser um dos principais lançamentos de 2022. E o inevitável logo aconteceu: as redes sociais foram tomadas pelo "debate" (se é que dá para chamar de "debate" um festival de gente se xingando sem parar) sobre a possibilidade de separar o autor de sua criação na hora de apreciá-la.

Os videogames descobrem uma "nova" discussão

Que fique claro, essa discussão não é novidade de forma alguma, e há décadas o tema é discutido em outras mídias como o cinema (pense em nomes como Woody Allen e Roman Polanski) e literatura (de Monteiro Lobato a H.P. Lovecraft). Sendo uma das mais jovens formas de expressão artística, é natural que os videogames ainda tenham muito a amadurecer, e que o seu público não saiba muito bem como lidar com isso ainda.

Não por acaso, a maioria das discussões no mundo dos videogames limitam-se a opiniões superficiais e simplórias ao redor de temas já saturados como a Dissonância Ludonarrativa e a implementação de Easy Mode a fim de permitir que mais gente os termine. Como eu, você já deve estar cansado de ler todos os lados desses debates, e imagino que o seu diagnóstico também seja o de lamentar a forma como essas conversas dificilmente chegam a algum lugar produtivo.

E é exatamente por isso que eu peço desculpas. Sinto que ontem, acidentalmente, posso ter aberto a caixa de pandora e ajudado a colocar mais um tema na eterna roda cíclica de discussões rasas da bolha gamer. Tudo começou com um humilde tweet que eu não esperava alcançar mais do que os meus 10 ou 20 likes habituais, mas que acabou virando o meu maior viral nas redes:

Que fique claro, eu não me acho de forma alguma o centro do mundo, e tenho plena noção de que, se não fosse eu postando isso, em poucas horas ou dias outra pessoa levantaria o mesmo debate e alcançaria a mesmíssima condição viral. Mas quis o destino que eu estivesse na hora e lugar certo (ou muito errado, a julgar por algumas ameaças de agressão que recebi) para catapultar esse debate ao meio dos videogames.

Muito em breve o meu pequeno pontapé inicial se perderá nas areias do tempo, e francamente eu mal posso esperar por isso. Mas, até lá, não consigo deixar de pensar tanto nas réplicas educadas e cordiais que recebi concordando e discordando de mim, ao que sou muito grato, como também nas mais diversas asneiras e grosserias que tornaram o meu Twitter um pequeno Chernobyl na tarde de ontem.

Boicotando uma das pessoas mais ricas do mundo

Um dos principais argumentos usados pelas pessoas que repudiam a ideia de dar dinheiro para a Warner Bros. é que, ao comprar uma cópia do jogo, você estaria ajudando a financiar a própria JK Rowling. Uma ideia que particularmente julgo inocente ao máximo, para não dizer outra coisa. Segundo o site TheSucessBug, a fortuna da JK Rowling hoje gira em torno de um BILHÃO de dólares, o que a torna a segunda autora mais bem paga do planeta.

Mas o que isso tem a ver? Ora, se você já pagou um boleto no banco e possui uma conta corrente com um mínimo investimento (mesmo que seja na poupança, a pior forma possível de investir a sua grana), deve saber que dinheiro sempre chama mais dinheiro. Então o que eu quero dizer é que mesmo que a gente entrasse no mundo de Além da Imaginação e, num estalar de dedos, absolutamente todos os produtos de Harry Potter entre os seus livros, filmes, parques e jogos desaparecessem do mapa, a autora seguiria vivendo no maior luxo e conforto possíveis.

Isso não é uma realidade que me alegra de forma alguma, mas é preciso ser pragmático: no mundo real, mesmo que a JK Rowling nunca mais venda um livro sequer, ela simplesmente já tem dinheiro o bastante para viver de rendimentos e garantir que as próximas cinco ou seis gerações da sua linhagem transfóbica vivam com todo o conforto do mundo. Se a sua ideia é boicotar para empobrecer a escritora, é melhor tirar o cavalinho da chuva.

Também me chamou atenção a forma como muitos acreditam que, mesmo concedendo a ineficácia de tentar boicotar para gerar um baque financeiro, o ato ainda seria um imperativo moral para pessoas empáticas e com bom senso. Pode até ser, acredito que isso vai de cada um, mas nesses momentos eu busco socorro no bom velhinho Karl Marx e na clássica noção de não existe consumo ético sob o capitalismo.

Em linhas gerais, a ideia é bem simples: se você vive em uma sociedade de consumo, querendo ou não, necessariamente você é uma parte ativa nas relações de produção, e quando você compra um produto fruto do capitalismo, endossa o próprio capitalismo. Entendo que isso é frustrante e limita bastante o nosso poder de solução real (ou não: VIVA A REVOLUÇÃO!), até porque mesmo o consumo consciente não é o bastante para abalar minimamente a estrutura do jogo como ele é jogado.

Se você ainda assim acredita no consumo ético e tenta conduzir a sua moral ao pé da letra, reflita um pouco: não bastaria deixar de comprar um joguinho ou abrir mão de ver um filme. Para manter a coerência, seria preciso repensar desde o seu café da manhã produzido pela mão de obra escrava da Nestlé até as roupas que você veste. E então provavelmente entrar em uma espiral de loucura até notar que praticamente tudo que você possui ao seu redor foi fruto de exploração.

Se formos selecionar, não daria para jogar mais nada. É notório que nos anos 1980, a Nintendo trabalhava madrugada adentro no que chamavam de "Mario Time", quando os desenvolvedores passavam a noite em claro programando as aventuras de NES. Alguns dos jogos mais vendidos e premiados da atualidade, como The Last of Us e Red Dead Redemption 2, foram feitos ao custo de muito crunch. E o que falar dos títulos da Activision Blizzard, empresa atualmente investigada por seríssimos casos de assédio? Você boicota todos esses jogos também?

E claro que isso não se limita aos videogames. A sua assinatura da Disney+ está em dia? Consome cada filme da Marvel que sai no cinema? Se sim, você está confortável em apoiar uma empresa que usa o dinheiro para financiar leis anti-gay e diversos atores que são anti-vacina?

"Então você apoia a transfobia?!"

"Olha aí o Thomas passando pano e buscando motivos para apoiar a transfóbica", é uma entre as várias loucuras que eu tive que ler no Twitter, e que imagino ter altas chances de reaparecer nos comentários aqui embaixo pelas mãos daqueles incapazes de ter um mínimo de interpretação de texto.

Então deixe-me frisar de forma clara e inequívoca que eu sou absolutamente favorável e partidário da luta trans, e que desejo do fundo do coração que tenham acesso a todos os direitos civis possíveis e imagináveis, sendo bem aceitos pela sociedade e vivendo em paz e sem medo de existir.

Esse mesmo progressismo me compele a ficar do lado do proletariado, das pessoas inocentes que dão duro em sua rotina de trabalho, muitas vezes sofrendo com crunch e abusos a fim de pagar as suas contas do mês. Eu quero que a JK Rowling se exploda, o meu interesse está alinhado aos dos trabalhadores, e não com uma das mulheres mais ricas e podres do planeta, oras!

Lançar um jogo de videogame é um processo que envolve centenas ou até milhares de pessoas ao redor de todo o globo, e pode ter certeza de que a maioria delas não concorda com o discurso de ódio da JK Rowling. Inclusive, diferente das coisas que a autora defende em sua vida particular, no game será possível criar personagens transgênero! É correto agir em detrimento dessas pessoas?

Isso torna a lógica do boicote ainda mais insana aos meus olhos. Como demonstrei, um eventual boicote seria absolutamente irrelevante para o bolso da JK Rowling, e se alguém fosse pagar a conta por isso não seria ela, nem os figurões da WB. Como sempre, a conta chegaria para o elo mais fraco: o programador Tim Bisley (nome e figura fictícia, naturalmente) que contava com o bônus de natal fruto das vendas do jogo para comprar um brinquedo novo para a sua filha.

À luz de tudo isso, mantenho firme a minha posição inicial: poucas questões são tão maniqueístas quanto as biscoitagens de rede social querem dar a entender. Em um mundo repleto de tons de cinza, tudo o que uma pessoa pode fazer é tentar ter o máximo de consciência e então agir de acordo com os seus melhores valores, respeitando sempre os demais.

Não é fácil.

Mas deveria ser.

A coluna é um texto autoral do redator e não reflete a opinião do veículo.

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