Abordagens sobre espiritismo e contato com o além da vida são comuns nas mídias de entretenimento, nos livros, nos templos, na rotina. As mentes criativas sempre são capazes de criar novas formas de conectar os entusiastas desse assunto e construir um clima de tensão que só costuma dar sossego quando as respostas a todos aqueles mistérios começam a aparecer.
The Medium segue rotas que se cruzam em torno disso e se apoiam numa boa subtrama envolvendo a Polônia pós-Segunda Guerra Mundial ao colocar o jogador na pele de Marianne, médium que é assombrada pela visão de uma garota assassinada.
Em tom de presságio, o mistério abre caminhos para a protagonista embarcar em uma jornada sinistra – e ela não está sozinha. A dualidade é um dos principais focos de The Medium, e nesta análise eu destrincho por que essa mecânica funciona de maneira tão eficiente no gameplay e na construção da atmosfera sem apelar para sentimentalismos baratos.
Confira a videoanálise completa:
A tormenta surrealista
Para construir o mundo perturbador de The Medium, o estúdio polonês Bloober Team usou toda a experiência acumulada em seus jogos anteriores (Blair Witch, Observer e Layers of Fear, para citar alguns) e não poupou ambições para entregar a grande culminação de seu talento.
Produto de orçamento visivelmente alto, o novo título esboça arte em todos os cantos, desde as minúcias de ambientes internos até fotografias anguladas estrategicamente em locais externos, com toques surrealistas no arranjo de cenários e no posicionamento de objetos – o surrealismo, aliás, é uma vertente abertamente usada pela equipe em seus jogos.
Palmas aos premiados compositores Arkadiusz Reikowski e, como você já deve saber, ao lendário Akira Yamaoka, artista por trás da sonoridade intimidadora de Silent Hill, que aqui dá seu toque para criar uma ambientação que se apoia na tensão psicológica e na construção da atmosfera em prol do medo autêntico, não dos sustos gratuitos.
-Fonte: Bruno Micali/Voxel
Terror abrangente
Tenha isso em mente: The Medium pode ser categorizado dentro do “novo terror”, uma experiência que promove reflexões e traz outras discussões à mesa, sem os preguiçosos “jump scares”, isto é, os sustões que fazem pular da cadeira. O jogo prefere imprimir um clima opressor, o mesmo visto em filmes como A Bruxa ou Hereditário, para entregar, ao jogador, o inexplicável prazer do medo.
É assim que se desenvolve a saga de Marianne em busca de respostas. A personagem tem movimentação confeccionada à moda antiga, na linha dos títulos da Quantic Dream, especialmente Beyond: Two Souls, e também nos jogos da Telltale, da Supermassive e da Dontnod, responsáveis por Until Dawn, The Dark Pictures e Tell me Why, em rápidas lembranças.
É aquele jeito meio engessado de se locomover, lá de 2010 ou 2011, mas que, em The Medium, ganha uma nova camada de gameplay: a dualidade. Basicamente, Marianne pode transitar entre duas realidades: a nossa, que seria o mundo material, e a sobrenatural, que seria o mundo dos espíritos.
Dualidade: desafio ao nosso cérebro
Por vezes, a mecânica confunde nosso cérebro – no bom sentido, é claro –, fazendo o jogador prestar atenção nas duas partes da tela e ter a obrigação de focar apenas em uma para progredir. O jogo determina em quais momentos essa divisão acontece, geralmente para intercalar o ritmo investigativo e a densidade da narrativa.
Dentro dessa dinâmica existem algumas nuances, como a projeção extracorpórea, por meio da qual Marianne concentra sua energia psíquica para controlar sua forma espiritual sozinha por tempo limitado. Além de médium, a protagonista se mostra uma ótima detetive – na verdade, em última instância, ela segue seu instinto.
O enredo se sustenta num ritmo interessante, intercalando, em bons intervalos, a entrega da narrativa e as mecânicas de gameplay
A resolução de enigmas não subestima a inteligência dos experientes em “point and click” tampouco abusa dos novatos de plantão. Os quebra-cabeças são muito satisfatórios, agradáveis de resolver, não fazem você gastar muito tempo indo pra lá ou pra cá em busca da resolução.
São puzzles que exigem dose moderada de raciocínio – não um Sherlock Holmes. Para mim, esse é um ponto extremamente positivo, pois odeio perder muito tempo com isso. Costumo ter pouca tolerância para andar em círculos em busca de itens óbvios.
-Fonte: Bruno Micali/Voxel
Enredo: reviravoltas e (poucos) clichês
O enredo se sustenta num ritmo interessante. Embora use clichês acerca do tema espiritual para apresentar a história de Marianne, a Bloober Team escreveu os diálogos de maneira sucinta, de forma a deixar o jogador instigado para saber o que vem a seguir, sem muita enrolação ou conteúdo desnecessário.
Apoiado em uma bela fotografia, como eu já mencionei, o level design obedece à estrutura linear, mas nem por isso deixa de entregar espaços amplos, convidativos à exploração e coleta de itens. Contemplar o semblante inóspito desses locais também ajuda a manter o senso de curiosidade lá em cima.
A perspectiva, ativada ao pressionar LB, funciona como o conhecido modo detetive e permite que Marianne enxergue rastros de pistas a serem investigadas.
-Fonte: Bruno Micali/Voxel
O lendário bicho-papão
Além das visões atormentadas, Marianne enfrenta, em sua sombria jornada, o Papão, que seria uma versão surrealista do famigerado bicho-papão, criatura presente em contos milenares de vários gêneros. Aqui, trata-se de uma forma deturpada de exibir uma espécie de encarnação do medo. Traduzindo em miúdos: um espírito do mal.
Nesses trechos, o jogador deve se esgueirar em objetos e prender a respiração para conseguir avançar – o ritmo do jogo ganha uma bem-vinda acelerada quando esses encontros terminam em perseguições alucinantes e espetaculares aos olhos. As cenas se montam e se desmontam com a mesma perspicácia de Control.
Mariposas não são os únicos “bugs” (propositadamente escrito entre aspas) que enfrentei em The Medium: em um ou outro trecho eu fiquei simplesmente preso no canto do cenário, envolto por paredes invisíveis e caminhando em falso, como em uma esteira, rendendo-me a carregar o último save, repetir um trecho e assim progredir.
À direita, o "Papão", espírito do mal de The Medium.Fonte: Bruno Micali/Voxel
Também existem quedas ocasionais na taxa de quadros por segundo, ao menos na minha experiência no Xbox Series X, mas nada gritante.
Sobre o tempo da campanha, muitos podem comparar a duração de The Medium com uma jogada de Resident Evil, mas ocorre que, na franquia da Capcom, zerar várias vezes faz parte da mitologia: há finais diferentes, armas que são desbloqueadas, inimigos e até modos inéditos que só são liberados após uma determinada quantidade de zeradas. The Medium entrega uma única experiência empacotada, pontual, linear e reta, sem backtracking (sempre reto, com um raro vai e vem em trechos isolados) em detrimento desse tipo de fator replay.
Veredito
The Medium não esconde suas grandes inspirações e abraça o medo pelo oculto de maneira intrigante. A obra de Lovecraft, autor do célebre O Chamado de Cthulhu, o eternizado Alan Wake e até Control são algumas das tonalidades que conseguimos enxergar nessa entrega da Bloober Team, além dos outros títulos mencionados ao longo da análise.
Mas o tempero “da casa”, concebido pela mecânica da dualidade e por uma ampla discussão adulta sobre espiritualidade, é a principal estrela do jogo. Em suas 6 a 8 horas de duração – que passam rápido até demais –, o suspense intimida o jogador sem reinventar rodas ou fazer firulas desnecessárias, por meio de fórmulas conhecidas mescladas em novos ingredientes. Rende-se a alguns clichês do gênero, mas, ao mesmo tempo, esforça-se para sair dessa bolha.
The Medium resguarda sua originalidade pelo minimalismo, não pelo excesso.
Pontos positivos
- Suspense bem construído e atmosférico, sem sustos gratuitos para entregar medo.
- O toque de Yamaoka na trilha sonora enriquece o clima do jogo.
- A mecânica da dualidade oferece uma camada interessante ao gameplay.
- Narrativa intercalada por enigmas satisfatórios.
- Visual surrealista e lotado de detalhes.
Pontos negativos
- Bugs ocasionais que “prendem” a personagem em um ponto do cenário.
- Eventuais quedas na taxa de quadros por segundo.
- A jornada poderia ser um pouco maior.
Frase da análise:
The Medium intimida o jogador pelo medo inteligente, não por sustos gratuitos. Usa fórmulas conhecidas, mas tem um belo tempero da casa.
Nota: 80
Jogo The Medium, PC
Desvende um mistério sombrio que só uma médium pode resolver. O jogo vem com a Trilha Sonora Original (digital) e a arte de The Medium.
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