Eu achava que conhecia o Warcraft 3 depois desses 18 anos desde o lançamento, mas claramente eu também nunca tinha entrado em contato antes com o cenário chinês. Agora que isso aconteceu, eu nunca vou conseguir tirar da cabeça as coisas insanas e os lucros milionários que eles conseguem fazer com esse jogo.
Ora, não é novidade que os chineses são loucos por Warcraft. Por lá, até parques usam essa temática e o próprio McDonalds já se enfeitou com World of Warcraft para celebrar uma nova expansão, mas o game de estratégia continua sendo uma paixão fortíssima entre os jovens. Não é à toa que a Blizzard faz anúncios grandes de Warcraft 3 na China antes de todo o mundo e conta com uma plataforma própria em parceria com a NetEase, a publicadora da empresa por lá, já que o público não procura o serviço da antiquada Battle.net por motivos óbvios: a brincadeira foi longe demais dentro do jogo.
A insanidade já começa quando eles, os chineses, fazem uma convenção anual só para desenvolvedores de mods do Warcraft 3. Aliás, o evento tem participação do time de jogos clássicos da Blizzard, os mesmos que são responsáveis pela remasterização de Warcraft 3: Reforged. Mas a cereja ainda está por chegando nesse bolo: nessas reuniões eles conseguiram rodar uma simulação quase idêntica do World of Warcraft só usando o editor de mapas do Warcraft 3.
Exatamente isso que você leu: o WoW rodando dentro do Warcraft 3. É uma maluquice que você só acredita vendo, eu imagino.
E isso é só o começo.
DLCs e lucros milionários
Em uma dessas convenções recentes de desenvolvedores, a NetEase reportou um lucro de mais de US$ 15 milhões em 2018 só com microtransações envolvendo o Warcraft 3. Sim, os chineses pagam para desbloquear todos os tipos de DLCs para os mapas desenvolvidos por lá, mas nada disso é feito dentro do Warcraft 3 — todas as compras são mediadas pela plataforma da NetEase que só libera o seu personagem ou skin quando o mapa termina de carregar.
A melhor forma de explicar esse cliente da NetEase é fazer uma comparação que vai atacar a nostalgia de muitos brasileiros que conheceram o Warcraft 3 nos últimos anos: essa plataforma é tipo um Garena muito tunado. Mas muito mais tunado mesmo.
São três seções principais: uma para o modo clássico — aquele de construir bases, fazer exército e atacar o inimigo —, outra só para o DotA e uma parte incrivelmente movimentada para os demais mods. Todos contam com matchmaking casual e competitivo, mas a aba de “Arcade”, como eles mesmo chamam, é a que mais chama a atenção.
Até porque a comparação com uma casa de fliperamas é bem válida. Ali dentro tem de tudo. De tudo mesmo: mods de sobrevivência, Tower Defense, batalhas de arena, RPGs online, coisas assim. Alguns mapas a gente vê passeando casualmente pela Battle.net, como Custom Hero Survival e umas variações doidas de DotA com Naruto. Mas outros são verdadeiros crossovers entre todos os tipos de anime que você pode imaginar.
A pira é que tudo é feito mediante a plataforma da NetEase. Você pode criar uma sala e jogar ACG, que é um dos mods mais famosos por lá, mas só irá iniciar efetivamente o jogo quando todos estiverem prontos no cliente (bem parecido como é o sistema do Game Ranger, um dos serviços usados por aqui). Aliás, cada um dos mapas conta com matchmaking próprio, e os mais famosos também trazem temporadas competitivas e campeonatos oficiais.
E as lojinhas: ah sim, cada mapa também conta com lojas separadas na plataforma onde você pode adquirir personagens adicionais, emojis, skins, asas, armas exclusivas dentro do jogo e toda a perfumaria que os gamers já estão acostumados. Muitas vezes, para liberar isso, o jogador precisa rodar algum tipo de código durante a partida para o mapa verificar se sua conta está autorizada a ter esses conteúdos.
Tudo isso movimenta um mercado paralelo e especializado em fazer mapas para o Warcraft 3 chinês. O sistema não é muito diferente da Steam: um desenvolvedor pode criar um mapa e publicá-lo na plataforma, dividindo parte dos lucros com as vendas de cosméticos e personagens com a própria NetEase.
Dessa forma, empresas inteiras são criadas na China com o propósito de desenvolver e dar suporte para os mapas da seção arcade, como é o caso da Wargee — você encontra uma entrevista com a CEO em inglês neste link, e ela fala sobre como eles também promovem streamers famosos para jogarem seus mapas em serviços de streaming equivalentes ao Twitch.
Desenvolver, publicar, promover e dar suporte. O mesmo propósito de qualquer estúdio de game espalhado para o globo, mas a linguagem de “programação” é uma só: o editor de mapas do Warcraft 3.
E meu amigo, nós não terminamos ainda. E se eu te falar mais de como esses chineses estão criando coisas que eu nunca imaginaria que seriam possíveis com essa engine de 18 anos atrás?
Os milagres dentro do Warcraft 3
Se você ficou surpreso com o World of Warcraft rodando no Warcraft 3, saiba que temos muito mais de onde veio isso daí. Os chineses dominaram a linguagem do editor de mapas como ninguém e deixaram o DotA no chinelo há um bom tempo.
Exemplos disso podem ser saboreados pelos ocidentais, mas tudo graças aos usuários que conseguem “crackear” os mapas da NetEase e converter no formato tradicional do Warcraft 3 — o tradicional “.w3x”, aquele que é lido normalmente pelo jogo com todas as formatações do editor de mapas. Normalmente, os mods e replays do jogo são salvos em outros formatos específicos na plataforma de lá, o que dificulta o processo de conversão para o Warcraft 3 ocidental.
E, se tudo der certo com esse processo de extração, é preciso também rezar para que os modelos e animações tenham sido preservados corretamente e torcer para que os caracteres ainda sejam legíveis — isso depois de instalar o pacote chinês, já que ele não é inserido naturalmente durante a instalação do seu Warcraft 3. O maior trampo, tenha certeza disso.
Mas o resultado vale a pena. Nos últimos meses, tive o prazer de presenciar algumas das maravilhas e insanidades que foram feitas dentro desse editor de mapas poderoso de quase duas décadas atrás. E a maior surpresa foi a que relato a seguir.
Mushroom Escape é, com certeza, o mod mais insano que eu vi nos últimos anos. Não estou falando de substituir alguns modelos dentro de um jogo ao ponto de vermos Dollynho fazendo a farra em um jogo da série Zelda. Estou falando do Warcraft 3, um jogo de estratégia visto de cima, ser convertido em um jogo de plataforma 2D em questão de segundos. Um jogo em que você controla um cogumelo e precisa cooperar com os outros jogadores para passar de níveis. Poderia muito bem ser qualquer jogo de celular que você já tenha visto, mas ele está dentro do Warcraft 3. Foi criado usando um editor de mapas que, naturalmente, não oferece nenhum suporte para fazer algo além de usar os modelos tridimensionais e as transições de câmeras que já estão presentes no jogo.
Como os chineses fizeram isso talvez seja pauta para outra reportagem. Ou para um livro inteiro. Confesso que, nesse momento, imaginei se eles poderiam usar essa ideia para, quem sabe, fazer um Tetris usando os modelos do Warcraft 3. Seria louco.
Falando em loucuras, os chineses são loucos por mapas no estilo “Arena” e colocam tudo quanto é personagem pra entrar no soco sem perder a amizade. Já falei do ACG, que traz Megaman, Kuririn, Naruto e até Saber num gameplay bem fluído e que dispensa comentários se eles tem autorização legal de estarem lá, mas temos outros mapas cuja ideia é a insanidade mesmo.
Em uma das aventuras pelos mods chineses, dei de cara com um que o propósito é não ter propósito. Você recebe um bonequinho e, quando apertar o botão sagrado da magia, ele se transforma em algum personagem de anime com um dos seus poderes icônicos. Não tem equilíbrio algum nessa brincadeira — tem alguém que cria um buraco negro imenso e mata todos que entrarem lá, tem um Megazord gigante que sai voando por toda a arena e tem até uma garotinha fofa que sua única magia é morrer. É tão louco quanto parece, dá uma olhada.
A lista de mapas dos mais diversos tipos não tem fim pelo NetEase e, pelo que deu para perceber, não parece que terá fim se a comunidade modder não estivesse com um pórem no meio desse caminho: a chegada da remasterização.
O impacto do Reforged
Foi durante a BlizzCon 2018 que a Blizzard anunciou algo esperado pela comunidade há tanto tempo: o Warcraft 3: Reforged, a remasterização que trará, principalmente, um tratamento visual para todo o jogo — inclusive para os mods.
A proposta da remasterização é oferecer toda a proposta de remasterização para os mapas já conhecidos. Sim, o DotA clássico será jogável no Warcraft 3: Reforged com todos os modelos novos e atualizados, incluindo terrenos, iluminação, estruturas. O que a Blizzard não oferece suporte, é claro, são para os Narutos e Gokus da vida que são obras externas de modelagem e que aparecem por tantos mapas por aí.
Outro detalhe é que, no processo de mudanças pré-Reforged, a Blizzard já confirmou que a partir do patch 1.31 — que deve chegar nas próximas semanas — o jogo terá suporte à linguagem de programação Lua (a mesma usada no desenvolvimento de World of Warcraft, lembra do vídeo dele rodando no Warcraft 3?) além de duas APIs chinesas que tornam as maluquices que vimos antes possíveis.
Até aí não parece um impacto direto para os jogadores daqui, mas um tópico inteiro no Hive, o fórum ocidental de desenvolvimento de mods de Warcraft 3, já demonstrou preocupações sobre o assunto. Ambas as APIs suportam a monetização e as microtransações que são usadas na plataforma da NetEase, e a implementação delas oficialmente na API da Blizzard pode significar que a empresa quer se envolver cada vez mais nesse processo. Outro problema é que, segundo alguns usuários de lá, as duas também foram bem prejudiciais para os fóruns chineses.
Nesse processo, muitos desenvolvedores na China já estão se preparando para essa chegada que pode impactar — e muito — os mods na China. Processando terrenos, texturas e modelos em alta definição para não ficarem destoantes da nova proposta remasterizada do Warcraft 3.
E as novidades podem aparecer a qualquer momento. A comunidade ainda espera por mais detalhes sobre a próxima atualização e mais informações sobre o Reforged; já que, desde a BlizzCon, estamos esperando para saborear uma fase Beta ou ver mais conteúdos remasterizados como os elfos noturnos que só foram apresentados a portas fechadas para alguns integrantes da cenário profissional.
Por enquanto, só podemos esperar e matar a nostalgia com algumas jogatinas enquanto todo o trabalho pesado — "work, work" — está sendo desenvolvido pela equipe de jogos clássicos da Blizzard. A expectativa só aumenta e, se depender dos chineses, as loucuras também.
Um agradecimento especial ao João Vitor pelas screenshots e por compartilhar a experiência com o NetEase que ajudou na construção desta reportagem.