Há 10 anos, Her imaginava futuro com IA que está cada vez mais real
Imagine uma tecnologia que, com o uso, começa a aprender tudo o que você faz. Ela ouve o que você fala e acompanha os seus cliques para, aos poucos, ir evoluindo e prevendo os seus passos. Por consequência, ela passa a te conhecer melhor do que qualquer pessoa em sua volta. Tudo o que aparece em seus dispositivos é o que mais vai lhe agradar.
A descrição acima certamente contempla o que estamos vendo atualmente nas tecnologias de inteligência artificial, incluindo o popular ChatGPT. Contudo, ela também resume bem o enredo imaginado pelo diretor Spike Jonze há dez anos. Em 2013, era lançado Her, filme bastante impactante para a época e que até hoje levanta questões que merecem ser discutidas.
Estrelado por Joaquin Phoenix e Scarlett Johansson (que nunca aparece em cena, e atua apenas com a voz), Her conta a história de um homem solitário que habita um futuro relativamente diferente em Los Angeles, mas cada vez mais próximo de nossa realidade atual. Neste cenário, as tecnologias resolvem quase tudo o que precisamos: organizam nossos compromissos, resumem as notícias, nos entretém no trânsito, possibilitam que façamos sexo mesmo sem que ninguém esteja por perto.
Por consequência, as pessoas estão presentes nas ruas, mas se encontram mentalmente isoladas pelos seus gadgets (qualquer semelhança com a nossa vida cotidiana não é mera coincidência). Theodore Twombly (vivido por Phoenix) é apenas mais um sujeito solitário circulando nesta cidade. Ele trabalha em uma empresa chamada BeautifulHandWrittenLetters.com e seu ofício, por si só, é um deboche: há anos, ele escreve cartas personalizadas (e manuscritas!) para clientes que os contratam para enviar missivas a pessoas que amam.
O amor, no filme, faz parte do comércio. Mas mesmo com tantas possibilidades de contratar o afeto, Theodore é profundamente solitário e melancólico. Ele sofre por conta do seu divórcio recente e parece paralisado em sua melancolia. Mas as coisas estão prestes a mudar quando uma nova tecnologia chega ao mercado: um sistema operacional tão avançado que parece até ter uma alma humana.
Uma distopia inusitada
À época do seu lançamento, Her causou muita repercussão e parecia estar prenunciando um futuro que soava meio assustador, em que as tecnologias seriam mais empáticas e “humanas” do que as próprias pessoas. Por conta do isolamento gradativo da sociedade (e ninguém nem sonhava que passaríamos por dois anos inteiros de pandemia por conta da Covid-19), o filme parecia uma espécie de denúncia do que estava por vir.
Mas há um detalhe importante aqui: Spike Jonze é um diretor sofisticado o suficiente para não cair no moralismo barato em torno de um discurso pessimista sobre as tecnologias. Pode-se inclusive entender Her como uma história de amor, com leves toques de comédia. Mas, em essência, é uma obra profundamente triste.
A inteligência artificial que Theodore testa se chama Samantha (nome que ela define após folhear um livro de mais de mil páginas em menos de um segundo). Já no começo, Samantha revela sua autonomia ao explicar que escolheu seu nome simplesmente por gosto - ou, como ela mesma explica, por intuição.
Estamos num ambiente, portanto, em que ensinamos as máquinas a “pensar” de maneira muito semelhante a nós (e, mais uma vez, qualquer semelhança...). Her nos explica aqui que a ideia do avanço tecnológico, instituída sob o rótulo de progresso, serve tantas vezes para ensinar mecanismos autônomos a fazer o que nós já fazemos.
Há uma longa cinematografia que imagina o que as máquinas poderão desempenhar no futuro, ou mesmo no presente. Alguns clássicos da ficção científica solidificaram uma visão apocalíptica desse cenário – tal como robôs assassinos que atravessam o tempo, em O Exterminador do Futuro, ou ciborgues que se inserem no meio das cidades para nos matar, em Blade Runner.
O filme de Spike Jonze é um dos mais proeminentes de uma seara relativamente recente, em que se entende que estas tecnologias podem causar transformações mais sutis, e que não podem ser vistas como negativas de uma maneira simples. A história contada em Her parece nos dizer: se os homens desenharam um mundo em que as tecnologias nos isolam, é até esperado que eles inventem máquinas para nos tirar do isolamento.
Um futuro melancólico
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Mas é claro que a ideia de habitar em um mundo em que nos relacionamos mais com robôs do que com as pessoas não é nada agradável. Por conta disso, Her causou muita discussão por conta de sua premissa entendida como triste. Em uma realidade em que a discórdia é a regra, e que somos cada vez menos tolerantes com as falhas dos outros, será que a nossa última esperança de encontrar afeto estará nas máquinas?
Her é capaz de comover, em parte, por conta da estética doce e algo surreal criada pelo diretor, em continuidade com suas outras obras (como o sensacional Quero Ser John Malkovich, de 1999). Theodore habita num ambiente que é circundado por uma bela trilha sonora e por cores pastéis agradáveis aos olhos – como se tudo em sua volta estivesse embalado por um filtro de Instagram. Assim como seus poucos amigos, ele mora em um apartamento espaçoso contemplado por uma vista ampla de uma Los Angeles que parece infinita e bela, mas com pessoas que circulam sempre sozinhas.
Este é um filme com uma baixa quantidade de ação. Basicamente, o centro da história está nas interações entre Theodore e Samantha, que criam uma relação afetuosa tão perfeita quanto impossível de se tornar completa, uma vez que não há corporalidade em Samantha. Além disso, é claro que parece impossível pensar no sistema operacional sem “preencher” a voz com a bela figura voluptuosa da atriz Scarlett Johansson. Talvez uma atriz desconhecida funcionasse melhor neste sentido.
Dez anos depois do lançamento, o romance deste “casal”, tão perfeito quanto errado, soa cada vez mais como uma realidade próxima em um universo em muitos sentem que estabelecer relações cobra um preço caro e que nem sempre vale a pena pagar. Tal como um conto infantil que carrega mensagens importantes, Her merece ser visto e revisto sempre que possível.
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