Pinóquio é uma obra inesquecível sobre a morte e a vida (crítica)
Há alguns clássicos infantis que parecem perenes. Geração após geração, os pequenos e os adultos seguem aficcionados por histórias simples que carregam elementos que, de tão difíceis de serem esquecidos, parecem mágicos.
As Aventuras de Pinóquio, romance de Carlo Collodi escrito em 1883, parece ser um desses casos. Ainda que carregue uma mensagem moral bem conhecida acerca dos danos da mentira, é possível dizer que Pinóquio é um clássico porque vai muito além disso. E está aí o longa Pinoquio, de Guillermo Del Toro, para provar esta tese.
O filme, que está disponível na Netflix, está entre os indicados ao Oscar de Melhor Longa Metragem de Animação, e é o franco favorito ao prêmio. Também pudera: a obra levou quinze anos para ser feita, pois nenhuma produtora topava encarar o projeto do diretor mexicano, que buscava fazer a animação a partir do uso da charmosa (e trabalhosa) técnica de stop-motion, contrastado com os recursos computadorizados dos filmes atuais.
O resultado beira o brilhante. Guillermo Del Toro consegue nos entregar um filme belíssimo e denso, condizente com o resto da sua obra, formada por clássicos como O Labirinto do Fauno e A Forma da Água (Oscar de Melhor Filme em 2018). O Pinoquio de Del Toro nos fala de lealdade, de paixão pela vida e do amor. Mas também é carregado de um texto político de franca atualidade: ele nos conta uma história sobre guerra e sobre a iminente ameaça do fascismo enquanto um discurso de salvação para as nações.
No longa-metragem, acompanhamos a vida do carpinteiro Gepetto, que mora em uma cidadezinha na Itália e constrói obras de madeira, na companhia de seu filho Carlo. Contudo, um bombardeio ocorrido numa igreja durante a Segunda Guerra Mundial faz com que Gepetto perca tragicamente seu amado filho.
O que resta ao velhinho é uma existência arrastada pela depressão e pelo desespero. Um dia, porém, numa crise de loucura potencializada pela dor, ele pega um pedaço de madeira e esculpe um boneco em formato de menino. Só que uma fada da floresta ouve o desespero do homem e resolve animar o boneco, para que o marceneiro nunca mais fique sozinho.
Morte e fascismo
O boneco, é claro, acaba sofrendo todo o tipo de rejeição pelos humanos em sua volta. Seu próprio inventor, Gepetto, tem dificuldade para reconhecê-lo como seu novo filho. A estranheza frente a um “menino de madeira” é um dos motes centrais da história de Pinóquio, que cumpre a missão de falar às crianças sobre o acolhimento dos que são diferentes a nós.
Na obra de Guillermo del Toro, no entanto, este tema aparece de maneira ainda mais sublime no roteiro. A Segunda Guerra Mundial se aproxima e o fascismo aos poucos se sedimenta na Itália, ocasionando que as autoridades policiais ajam de maneira truculenta, sustentados por um discurso conversador e religioso de "Deus, pátria, família".
Gepetto, no momento em que seu filho Carlo morreu, estava instalando um Cristo de madeira na igreja local, que acaba nunca sendo finalizado. Em alguns momentos da trama, a polícia desdenha do interesse de Gepetto por Pinóquio, sendo que nunca terminou o esperado Cristo da comunidade. “Ele é feito de madeira como eu. Por que gostam dele e não de mim?”, pergunta Pinóquio ao seu pai, de maneira muito inspirada.
São questões duras e densas que são levantadas em um filme – teoricamente – direcionado às crianças. Isso ocorre também quando se aborda a razão pela qual os fascistas finalmente se interessam por Pinóquio: quando se dão conta que, por ser um garoto que não morre, ele seria o soldado perfeito na guerra. Pouco importa o que isso significaria para ele - sua vida é vista como pertencente ao Estado.
Nesta disputa pelo menino madeira - entre o pai, a polícia e um dono de circo oportunista chamado Conde Volpe, que quer rentabilizar o fenômeno -, surgem discussões cada vez mais complexas. A fada da floresta que transformou Pinóquio, conforme vemos, tem a visualidade de uma esfinge, e aparece, de alguma forma, para nos ensinar alguns segredos sobre o que há de mais fundamental: a ideia da vida e da morte. É com as visitas a ela que Pinóquio descobrirá que viver para sempre não é exatamente uma glória.
A história também se equilibra entre personagens mais engraçados como o atrapalhado e sábio Grilo Falante, que atua como a consciência de Pinóquio e mora dentro dele, e o macaquinho Spazzatura, que se torna um bom amigo ao se rebelar contra a exploração do Conde Volpe.
Uma obra-prima para restar ao tempo
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
A união de uma história sombria, como essa, à estética lúgubre e onírica de Guillermo Del Toro, parece ter resultado em um casamento perfeito. É difícil imaginar que outro diretor seria capaz de carregar as tintas com tanta coragem para recontar uma obra infantil.
O tema de Pinóquio, embora nem sempre nos demos conta disso, se insere no gênero da ficção científica, pois ele discute os rumos tomados pelas tecnologias – seja na produção de robô futurista, seja na criação de um boneco de madeira bem artesanal. O destino dessas “máquinas” é um assunto que nos interessa pelo menos desde Frankenstein de Mary Shelley, escrito em 1816.
Muitos críticos apontaram – e eu me uno a eles – um certo parentesco entre esta obra e outro clássico (ainda que nem sempre lembrado como tal) que é o filme Inteligência Artificial, lançado por Steven Spielberg em 2001. Em comum, ambas as obras imaginam crianças mecânicas produzidas por pessoas para a realização de seus desejos, mas que são rejeitadas e descartadas de forma desumana quando não servem mais para os seus propósitos.
O conto sobre o menino de madeira reconstruído por Guillermo Del Toro adentra na mesma seara do filme do Spielberg: ele nos toca em lugares profundos onde as palavras não parecem alcançar. É verdade que Pinóquio nos explica sobre por que não se deve mentir. Mas, como este filme adorável esclarece, ele também discute o valor intrínseco da vida justamente pelo fato de ser tudo aquilo o que temos.
Fontes
Categorias