Eleita diverte ao fazer uma influencer virar governadora (crítica)
Existe uma frase recorrente em adesivos espalhados pelo Brasil que diz que “política não deveria ser profissão”. Por mais que haja um raciocínio que, à superfície, parece lógico, essa é uma frase que aglutina um louvor à antipolítica, ou seja, à ideia de que nossos problemas sociais decorrem do fato de o poder se centralizar nas mãos do que vivem disso.
A atitude oposta a esta seria que os governos fossem parar nas mãos de pessoas indignadas, justiceiras, tidas como mais "francas" e "transparentes". O resultado de defender isto já é conhecido por todos - e não é bom. Penso que esta é a premissa por trás de Eleita, série brasileira disponível na Amazon Prime, escrita (junto de Célio Porto) e estrelada por Clarice Falcão.
A execução desta ideia, nos dias atuais, pode até parecer óbvia, mas vale lembrar que esta é uma série concebida há cinco anos – ou seja, antes do fenômeno Jair Bolsonaro chegar ao Planalto ou da eleição de Volodymyr Zelensky na Ucrânia (antes de ser eleito, Zelensky era comediante e estrelou uma série em que assumia a presidência de seu país).
A questão original de Eleita, então, é menos a premissa e a mais a execução. Clarice encarna Fefê Pessoa, uma influencer digital de lifestyle (ou de "vida louca", para quem preferir) que se candidata ao governo do Rio de Janeiro e, para espanto geral – incluindo dela mesma – se consagra vencedora do pleito.
Obviamente, logo vamos descobrindo que há vários dedos da velha política por trás dessa eleição: boa parte dessa vitória foi articulada por Netinho, um deputado interpretado pelo veterano Diogo Vilela. Vindo de uma linhagem de parlamentares, é Netinho o sujeito que tenta “domesticar” Fefê para que ela se porte minimamente como alguém capaz de se articular politicamente com os demais membros desse ambiente.
Mas Fefê, claro, é indomável. A personagem bebe escancaradamente de outras influências, como a Selina Meyer de Julia Louis-Dreyfus em Veep ou do icônico Michael Scott, o chefe de escritório vivido por Steve Carell nas temporadas de The Office. Em comum, todos estes personagens centralizam o mesmo arquétipo: o de pessoas incompetentes que chegaram ao poder meio por acaso.
Há outro aspecto importante em comum entre Fefê e eles: por mais que eles sejam repletos de nuances negativas (Selina é racista, homofóbica e superficial; Michael é egoísta e autocentrado; já Fefê é completamente imatura), são personagens desenhados para criar alguma conexão com os espectadores.
Sem contar que, mesmo Fefê sendo absolutamente inábil para a política, seu gosto pela vida e pelos prazeres mundanos (como o sexo, as festas e as drogas leves) fazem com que seja bem fácil se identificar com ela.
Uma distopia no Rio de Janeiro
O diferencial de Eleita em relação às suas “concorrentes”, por óbvio, é o contexto brasileiro. E o cenário em que se passa a série não é escolhido por acaso. Estamos aqui diante de alguém que assume a dificílima tarefa de governar o Rio de Janeiro, um estado em que várias forças se encontram e disputam território.
A pompa e tradição atrelada a este importante estado aparece em uma ambientação caprichada, usando como locação espaços reais, como a Assembleia Legislativa, o Palácio das Laranjeiras e o Palácio de Guanabara.
Isso é fundamental para dar a tônica esperada em Eleita, que cria uma espécie de distopia que mistura elementos do real com um discurso que confunde o que, de fato, existe no Rio e o que está sendo imaginado.
Passado e presente batem de frente numa história em que a zoeira de Fefê e seus amigos são postos lado a lado com a zoeira da política carioca. E a grande graça da série está justamente nas entrelinhas, nas piadas que vão surgindo e que vão sendo captadas apenas por quem está familiarizado com o contexto.
Trago alguns exemplos. Em um dos episódios mais engraçados, ocorre um baile de Carnaval, e cada personagem bola uma fantasia. A de Fefê, meio maluca, lembra algo como um sistema digestivo. Já seu “namorado” (na verdade, um cara que ela “pega” nas noites solitárias, mas que é elevado a “primeira-dama” no intuito de trazer alguma seriedade à figura da governadora) vai para a festa com um tailleur cor de rosa idêntico ao que a icônica Jackie Kennedy, esposa do presidente americano John F. Kennedy, vestia quando seu marido foi assassinado ao seu lado.
Mas os toques de “carioquês” são os que dão a liga nesse episódio: a fantasia do assessor Netinho é apenas um guardanapo na sua cabeça. Remete, portanto, ao episódio da “farra dos guardanapos”, um luxuoso jantar dado pelo então governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral em Paris, no ano de 2009. O evento custou R$ 1,5 milhão e se tornou um símbolo da gestão corrupta da era Cabral.
As ideias tresloucadas de Fefê também fazem comentários interessantes sobre os rumos que a política tem tomado no Rio de Janeiro e no país. Em uma de suas decisões, ela resolve privatizar o município de Nova Iguaçu, vendendo-o para a Amazon (empresa, inclusive, que comanda a Amazon Prime, produtora da série). As consequências, claro, são péssimas - mas destaco aqui a ousadia de criticar, de alguma forma, o próprio patrocinador dessa atração.
Um elenco de peso
(Fonte: Amazon Prime)Fonte: Amazon Prime
Isso não significa que Eleita também não tenha as suas fragilidades. Pessoalmente, senti falta de uma melhor contextualização sobre a história de Fefê Pessoa que a levou a se candidatar ao governo do Rio. O quesito “Tiririca” (no sentido de uma pessoa aleatória que resolve aproveitar a própria popularidade para se enfiar na política) parece pouco esboçado na série, embora fique subentendido que a chegada de Fefê ao poder se deu por articulações bastante arrojadas das “raposas” da velha guarda.
Por outro lado, destacaria como grande trunfo de Eleita o forte elenco de apoio. Muitos atores e atrizes que despontam na comédia brasileira atual fazem pontas pequenas, mas relevantes.
O principal destaque, em minha visão, está para a talentosa Luciana Paes, que interpreta a Pastora Hosana, uma deputada evangélica espertona que quer surfar na onda da nova governadora. Suas estratégias – incluindo uma musiquinha hilária sobre masturbação de bebês – estão entre as atrações de Eleita.
Mas há vários outros nomes relevantes no elenco. Prepare-se para ver uma ponta do recém bombado Diogo Defante como o amigo maconheiro de Fefê. Há também Polly Marinho como a única assessora mais sensata da governadora, e Pablo Pêgas como um assistente assumidamente gay que não sai do lado de Fefê.
Além disso, Eleita traz alguns dos ex-colegas de Clarice Falcão em Porta dos Fundos, como Estevam Nabote e Fábio de Luca. Por fim, destaco os veteranos: Cristina Pereira, Diogo Vilela e Ingrid Guimarães mostram o quanto a experiência também é importante para dar vida a um texto de humor.
Uma vez que a série foi imaginada há 5 anos, diria que certamente há muitos temas que poderiam figurar em uma segunda temporada de Eleita, que talvez poderia focar mais nos efeitos na chegada da extrema-direita à política brasileira. Material não vai faltar para que os roteiristas imaginem novas confusões para Fefê e seu staff.
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