Harry & Meghan registra o circo midiático em torno da monarquia (Crítica)
Muito se fala hoje sobre os privilégios históricos que certas camadas da população mantêm sobre as outras. O famigerado privilégio branco evidencia que, na maior parte da história da humanidade, as pessoas brancas tiveram muitas vantagens em relação às pessoas negras e de outras etnias. Os homens, por outro lado, sempre receberam regalias que as mulheres não tiveram, assim como as pessoas heterossexuais sobre as homossexuais, e assim por diante.
O que dizer então sobre as “realezas” dos países, que ganharam poder porque, em algum momento da história, conseguiram convencer (por meio da força física, diga-se) que um suposto deus os havia escolhido para serem mais especiais do que outras pessoas? E é possível que alguém faça parte de uma monarquia e, ao mesmo assim, tenha o direito de denunciar os sofrimentos gerados por essa posição?
Penso que este é o contexto que aparece como pano de fundo da minissérie documental Harry & Meghan, da Netflix. Em seis episódios, ela traz a versão “desabafo” da família formada pelo príncipe Harry, da Grã-Bretanha, sua esposa Meghan Markle e seus dois filhos, sobre as razões que os levaram a abdicar dos “privilégios” (as aspas aqui são explicadas ao longo da série) de pertencer à monarquia inglesa.
Contudo, há uma problemática que se volta àquilo que Harry e Meghan tiveram que abrir mão. É um pouco difícil se condoer das dores do casal ao sabermos que a série da Netflix surge de um contrato milionário com a plataforma. Segundo o The New York Times, eles teriam recebido cerca de R$ 530 milhões para lançar uma série de documentários, filmes, programas e atrações infantis nos próximos anos.
Por tudo isso, a ideia do “perderam tudo” para viver apenas de amor cai por terra de forma muito rápida.
Ainda assim, Harry & Meghan traz uma oportunidade interessante para examinar o contexto midiático em que a monarquia britânica, a mais famosa do mundo, permanece existindo, ainda que onere os cofres públicos da Commonwealth.
O circo midiático em torno da monarquia britânica
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
A série da Netflix assume um papel de organizar uma das histórias mais incensadas pela mídia na última década, supostamente trazendo a versão “real” por trás de toda a formalidade da representação invasiva e sensacionalista que a imprensa britânica faz desde sempre de sua monarquia.
Em resumo, a série documental sumariza tudo o que o príncipe Harry (sempre retratado como o filho problemático) enfrentou desde que conheceu e veio a se casar em 2018 com a americana Meghan Markle, que construía uma carreira como atriz de séries e no ativismo social.
Ocorre que Meghan tinha vários quesitos que destoam das expectativas colocadas sobre as esposas desses monarcas. Para começar, Meghan tinha uma carreira pregressa e – fator muito indesejável – já havia sido casada antes. Para completar, ela tem identidade birracial: é filha de uma mãe negra e pai branco. Tudo isso destoaria muito do estereótipo da “princesa” esperada para casar com um neto da Rainha Elizabeth II – e a oporia diametralmente ao papel cumprido por Kate Middleton, a esposa do príncipe William.
A série vai mostrar, portanto, que a imprensa britânica explorou todos esses elementos de maneira muito cruel e tóxica. Tal como sempre fez com os demais membros da monarquia, vale dizer. E uma das falas mais esclarecedoras de Harry & Meghan surge quando Harry explica que há uma espécie de compreensão tácita sobre uma troca: os contribuintes britânicos pagam para que a realeza siga existindo e vivendo uma vida de privilégios. Em retorno, os aristocratas entendem que expor momentos da própria vida e cumprir esse papel faz parte do preço que devem pagar.
Pode parecer um reclamação tola, mas vale lembrar que os filhos dessas famílias - como Harry e William - não tiveram exatamente uma escolha. Eles nasceram e foram criados em um ambiente em que a troca de sua privacidade pelos privilégios da nobreza era apresentada como natural. Harry, na série, deixa bastante claro que, desde pequeno, ele e o irmãos viveram dentro de uma série de Show de Truman da vida real.
Deste modo, a série da Netflix cumpre um importante papel em destacar que todo esse sistema de “troca” se baseia também em séculos de opressão da Grã Bretanha sobre outros países. Isso inclui, por exemplo, a exploração do Reino Unido sobre suas colônias e à ideia de que era normal submeter a população negra ao serviço dos colonizadores. Meghan, nesse sentido, seria uma pedra no sapato a expor um passado (e um presente) calcado em cima do suor e do sangue de muita gente.
Uma riqueza trazida nos episódios de Harry & Meghan é conseguir resgatar os sofrimentos relatados (de forma muito mais escandalosa, mas em canais bem mais restritos) pela princesa Diana, mãe de Harry, que pagou com a própria vida pela participação neste circo midiático (o acidente de carro que a vitimou teria sido causado pela fuga de paparazzi). Há uma parte muito comovente na série que envolve as histórias que Harry conta sobre sua mãe e sobre o que significou crescer sem ela na sua vida.
Harry & Meghan: uma história de amor?
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Por outro lado, a narrativa constituída pela Netflix para contar essa história traz muitas desconfianças sobre a tão proclamada “franqueza” trazida aqui. O primeiro episódio, por exemplo, é tão açucarado que pode provocar riscos aos portadores de diabetes. O relacionamento de Harry e Meghan é apresentado de maneira tão romântica e idealizada que fica até difícil de engolir.
Penso que o jornalista Maurício Stycer, em sua coluna na Folha de São Paulo, foi cirúrgico. A estrutura de Harry & Meghan é claramente novelesca e melodramática. A Netflix lançou os primeiros três episódios, que se encerram na expectativa de um retorno para o clímax: a cerimônia de casamento, pincelada com muitos toques de tensão, como os desentendimentos de Meghan com seu pai e sua meia-irmã.
Não dá, portanto, para esperar muita originalidade no que vai ser mostrado nesta série, que pode irritar o espectador mais acostumado com narrativas seriadas e os truques que costumam ser usados para prender os espectadores. Por ser um atração documental (ou seja, calcada na ideia de realidade), causa bastante desconforto que esta história tenha sido contada a partir de moldes que são muito mais comuns na ficção, no intuito de causar um efeito de “conto de fadas”, que é justamente o que Harry e Meghan parecem querer criticar o tempo todo.
Para quem decide encarar mesmo assim, vale a pena prestar atenção na parte mais jornalística da trama, com várias fontes alheias à monarquia e ao próprio casal, analisando o modus operandi da cobertura dada à realeza e ao problema sistêmico em ter uma imprensa que lucra em cima dessa gente.
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