O Urso é uma metáfora improvável sobre luto e trauma (crítica)
De uns anos para cá, ficamos viciados em programas de culinária, do estilo MasterChef e seus tantos derivados. Mas quem assiste a alguns poucos episódios de um show deste tipo logo saca que, ali, a comida é mais uma metáfora do que um fim em si mesma. Os pratos requintados, de difícil execução, e o cenário frenético das cozinhas profissionais são usados para falar sobre valores, princípios coletivos, problemas pessoais e familiares.
A série O Urso, disponível na Star+, não foge a esta regra, mas consegue partir deste tema para dar um passo à frente. A brilhante narrativa criada pelos produtores Christopher Storer e Joanna Calo parte de um mote já bastante usado na ficção (o retorno do filho pródigo para casa) para discutir trauma, luto e inadequação. Tudo isso, claro, transcorre em um ritmo alucinado de uma cozinha de um restaurante familiar em frangalhos.
A premissa caótica de O Urso
A história de O Urso gira em torno de Carmen “Carmy” Berzatto (vivido de maneira muito inspirada pelo ator Jeremy Allan White, de Shameless, cujos olhar profundo e trejeitos soturnos o fazem lembrar muito Gene Wilder, o eterno intérprete de Willy Wonka no filme de 1971). Ele é um chef premiadíssimo, que comandou a cozinha do melhor restaurante dos Estados Unidos. Contudo, quando seu irmão, Michael, comete suicídio, ele herda o The Original Beef, o restaurante da família, localizado em Chicago, sua cidade natal.
Carmy resolve então deixar para trás a sua carreira de prestígio (que, conforme compreendemos pelos flashbacks, é também a causa de muitos traumas que ele carrega) para assumir a “herança maldita” deixada pelo irmão. Mas ele não recebe apenas um negócio quebrado: o que ele precisa comandar é todo um sistema mal executado e com vários sujeitos agregados a ele. E sendo tudo um negócio de famiglia (a identidade italiana – que é sempre expressa aos gritos – é um dos temas constantes em O Urso), fica ainda mais difícil colocar alguma ordem no caos.
Na verdade, Carmy ganha uma equipe confusa e enlutada. Richie (Ebon Moss-Bachrach, de Girls), o “primo” que era o melhor amigo e sócio do Michael, é um chefe tão estúpido e burro que acaba mais atrapalhando do que ajudando o negócio. Já os funcionários são atrações à parte: Tina (Liza Colón-Zayas), a funcionária mais velha, finge não falar inglês para não obedecer a ordens dos chefes mais jovens, e Marcus (Lionel Boyce), o padeiro da equipe, tem um espírito livre e criativo que não combina com o ritmo doido da cozinha.
Por fim, aparece como destaque a única aquisição à equipe que é feita por Carmy: Sydney (Ayo Edebiri, de Big Mouth), a sous chef, é o braço direito e uma espécie de alter ego do chef. Logo em sua primeira cena, quando é contratada, ela pergunta por que Carmy deixou o seu trabalho premiado para voltar a um restaurante falido. Trata-se, portanto, da questão chave para entender toda a série. Sidney é apresentada como um elemento externo à família, e cujos métodos da alta cozinha se mostram ineficientes em um ambiente profissional tão contaminado pelas relações de proximidade.
Luto e trauma em O Urso
Quem assiste à O Urso logo se dá conta: esta não é uma série para maratonar de uma vez só. A direção de fotografia saturada das cenas e a intensidade frenética e estressante dos trinta minutos de cada um dos oito episódios da primeira temporada, simulando a rotina caótica dos restaurantes profissionais, podem causar fortes sensações de ansiedade em quem acompanha a série.
Claramente, a intenção é levar o espectador para um sentimento de tensão constante – que se traduz não apenas no aspecto profissional, mas naquilo que todos os personagens carregam dentro de si. A leitura mais óbvia é que todos ali estão em luto pela perda traumática do irmão e do amigo. Mas há mais coisa que aos poucos vem à tona.
Carmy, a estrela, apartou-se do seio familiar por um caminho tido como “natural” – seria mais do que óbvio de que ele só teria a opção de se tornar um dos grandes chefs da cozinha mundial ao invés de continuar atrelado ao negócio da família. Uma das consequências possíveis disso é o afastamento dos irmãos Michael e Sugar (Abby Elliott), que guarda mágoas com o irmão. Carmy, obviamente, carrega culpa por não ter convivido mais com Michael.
Já Richie, que claramente é um pentelho com todos em sua volta, é também um sujeito ferido pela perda do amigo. Seu amor por Michael o impede de se revoltar completamente contra o seu irmão mais novo que surge do nada para assumir o seu “destino” – tal como o filho pródigo, não há como não voltar para casa.
E se essa é uma história de luto, não podemos negar que essa premissa é explorada, de forma muito inteligente, em muitos sentidos. Por um lado, há a óbvia e trágica perda de Michael, que afeta a todos. Mas há também a perda (sempre um tanto traumática) de uma cultura organizacional, e a reação natural dos participantes do sistema é lutar contra as mudanças.
Isso é facilmente identificável por todas as pessoas que já trabalharam em uma empresa por um período razoável, e certamente assistiram às dificuldades de se alterar alguma coisa, mesmo quando tudo vai mal. É exatamente o que acontece no The Original Beef. Enquanto Carmy e Sydney, os “estudados”, os prodígios, tentam aplicar no restaurante algo que aprenderam nos melhores cursos do mundo, nenhum dos membros da equipe está propenso a cooperar – mesmo que nem se deem conta disso.
Prepare os talheres
Dito tudo isso, vale a pena ressaltar aqui: O Urso não é para todos os paladares. Não por acaso, é o tipo de série que se torna mais sucesso de crítica de que público. Ela nos leva, sem grandes explicações, para dentro do universo habitado por um protagonista sombrio e calado, a cuja vida interior não nos é dado acesso direto por meio das palavras.
É incômodo e perturbador? Certamente que sim. É reconfortante? Provavelmente não. Mas há algumas recompensas para quem consegue atravessar essa dolorosa travessia ao lado de Carmy, podendo aprender uma coisa ou outra sobre a vida.
Fontes
Categorias