Casamento às Cegas 3 discute o que é aceitável em nome do amor (crítica)
Certos programas de entretenimento costumam nos conquistar por trazerem uma camada mais “profunda”, digamos. Coloco a franquia Casamento às Cegas, da Netflix, nesta leva: há um certo prazer em assistir a este reality show por nos sentirmos um pouco como antropólogos da vida cotidiana.
Com isto, quero dizer que nos regozijamos com a ideia de que aprendemos algo sobre o humano quando consumimos um produto deste tipo. A matéria-prima de Casamento às Cegas é a premissa do amor romântico levada às últimas consequências: será possível descobrir o amor verdadeiro sem conhecer o elemento externo (a estética), apenas nos atentando ao que a pessoa “tem por dentro”?
A proposta de investigar esta questão é mais uma vez retomada com a temporada 3 de Casamento às Cegas em sua versão americana. O pacote entregue é o mesmo: homens e mulheres são colocados em salas isoladas (os pods) e conversam uns com os outros separados por uma parede. Depois de um certo tempo, eles precisam decidir se estão apaixonados por alguém e, em caso positivo, fazem um pedido de casamento à suposta alma gêmea.
Mas o programa começa mesmo depois disto: quando as paredes são retiradas e os casais precisam conviver brevemente (cerca de dois meses) para resolver se realmente vão dizer o simbólico “sim” frente a um altar – o que significa, na frase repetida várias vezes durante a temporada, que o amor é cego (ou seja, que ele existe para além dos “olhos” da sedução física).
Embora pareça uma fórmula fechada (e realmente é), a graça de Casamento às Cegas é mergulhar nas minúcias mostradas nestas dinâmicas dos relacionamentos para tecer nossas pretensas análises sobre a complexa tarefa de conviver com alguém. Ainda que a temporada 3 seja um pouco morna em vários momentos, este material está presente lá.
Os casais de Casamento às Cegas 3
Em todas as temporadas de Casamento às Cegas, acompanhamos cerca de uma dúzia de personagens que são apresentados logo no início e vão a “encontros” em salinhas isoladas, sem jamais se verem. Claramente, esta parte do programa é roteirizada: por certo há outros casais no programa, mas apenas cinco são selecionados para ter suas histórias contadas no resto da temporada.
Estes dez sujeitos costumam funcionar como “arquétipos” de algo que possa ser facilmente identificado pela audiência. Em Casamento às Cegas 3, os personagens não parecem tão bem desenhados quanto nas temporadas anteriores, mas temos material suficiente para desenrolar alguma discussão sobre eles.
Temos Bartise, um homem negro de 25 anos que cultua o próprio corpo e que acaba ficando com Nancy, uma latino-americana que foi cortejada por pelo menos três homens. Logo de cara, quando se encontram, Bartise deixa claro que Nancy está aquém do seu padrão. Mais adequada a ele seria Raven, uma instrutora de Pilates que levou um fora de Bartise e acabou se acertando com Sikiru (SK), um nigeriano que traz a cultura de seu país como um valor muito forte. Raven e Bartise se sentem assumidamente os mais bonitos do grupo, e por isso há uma desconfiança velada de que eles deveriam estar juntos.
Já Cole, que parece ter uma premissa meio desagradável de fazer graça em situações constrangedoras, fica com Zanab, uma comissária de bordo órfã de pai e mãe e que tem claros problemas com a própria autoestima. No entanto, quando a vê, ele logo se arrepende de ter escolhido Zanab em detrimento a Colleen, que ele diz fazer mais seu tipo. Ela, por sua vez, se comprometeu com Matt, um homem traumatizado por um casamento anterior e que está sabotando o novo relacionamento em cada oportunidade que tem.
Por fim, há Alexa e Brennon, uma versão televisiva de A Dama e o Vagabundo: ela é uma mulher empoderada que pertence a uma família rica israelense, em que todas as mulheres parecem copiar as Kardashians. Já Brennon expõe o seu arquétipo já na foto de divulgação, em que segura um chapéu de cowboy. Poderá dar certo o relacionamento da refinada menina rica com o caipira pobretão?
A riqueza do material humano
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Casamento às Cegas costuma ser muito comentado por conta dos barracos que tendem a acontecer principalmente nos episódios finais, quando eles precisam declarar, no que seria o clímax do programa, se dirão sim ou não para a cara metade. Esta tensão é construída de forma muito eficiente – embora isso signifique pelo menos 9 episódios anteriores que poderiam ser bem mais curtos caso as rebarbas fossem cortadas.
Mas creio que a grande riqueza deste reality show está no meio: naquilo que conseguimos retirar como conteúdo para a análise das dinâmicas humanas.
Soma-se isso o impacto cultural pelo fato de este ser um programa norte-americano, o que traz certos estranhamentos para nós, brasileiros. Há, por exemplo, a história entre Raven e SK. Será que ela o escolheu pelo fato de Bartise ter optado por outra mulher? Existe amor possível de surgir suscitado por uma rejeição?
Mas o aspecto mais interessante aqui é que SK é mediado por uma cultura familiar “forte”, em que se entende casamento como algo coletivo. Para a mãe do noivo, não faz sentido haver um enlace caso a família da noiva não esteja presente. Raven, por outro lado, tenta esclarecer que está casando com o homem e não com a família dele (mas não deixa de tentar se adequar de várias formas à figura submissa esperada da mulher na cultura nigeriana).
Outro exemplo um pouco assustador é de Bartise e Nancy. Ela é uma fonoaudióloga que parece bastante esclarecida e progressista. A pauta do direito ao aborto entra em algum momento na conversa do casal: ele diz que não abriria mão de uma gravidez não importa que tipo de problema a criança tivesse, pois daria conta (claramente, uma posição masculina padrão de quem não tem a menor ideia do que significa criar um filho, o que sugere que ele saltaria fora na primeira dificuldade).
Já ela tem outra posição: diz que, pela quantidade de crianças com dificuldades que atendeu em seu trabalho, repensou sua posição sobre o direito ao aborto. Só que o mais curioso aqui é que, quando Bartise apresenta Nancy para sua família, ele já traz esta discussão sobre o aborto no primeiro encontro entre eles.
Da mesma forma, Colleen, que se declara como alguém com quem os homens nunca firmam compromisso e que julgam como superficial, está reticente sobre os ataques que o noivo Matt tem diante de situações banais, como o fato de ela ter permanecido na balada com as amigas. Seria algo aceitável que Matt se desestabilize por coisas não tão importantes assim?
O que é grave demais e o que deve ser tolerado em nome do “amor”? São estas as pequenas pérolas presentes em Casamento às Cegas e que nos fazem voltar todos os anos para conferir este reality show do constrangimento amoroso.
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