O Rei da TV relembra (e imagina) a história de Silvio Santos (crítica)
Silvio Santos está sem voz. E Silvio Santos sem voz é tipo Picasso sem tinta, Ferrari sem gasolina – só que pior. Pelo menos para os brasileiros. Porque Silvio Santos é um personagem central na cultura popular do país, um sujeito que transcende a sua própria existência na terra e que já se constituiu como um mito, ainda em vida. Um mito autofabricado, mas, ainda assim, um mito.
Inicio este texto desta forma para louvar uma das escolhas feitas pela série O Rei da TV do Star+, que intenta contar a história (ou as histórias) deste que provavelmente é a maior figura da TV brasileira, o apresentador e dono do SBT Silvio Santos, atualmente com 91 anos.
Tudo o que sabemos sobre ele tem a ver com os que os seus biógrafos conseguiram resgatar, mas sobretudo com a imagem que ele mesmo construiu (e controlou) acerca do seu personagem. Senor Abravanel, como sabemos, não é Silvio Santos, por mais que estes dois indivíduos se confundam em vários momentos.
Por isso, há uma grande riqueza nesta série, dirigida por Marcus Baldini (do filme Bruna Surfistinha), ao optar por mergulhar na atmosfera delirante e megalomaníaca que Silvio Santos montou, com muito esmero, para se apresentar à suas “colegas de trabalho”.
Portanto, não espere de O Rei da TV uma preocupação com o realismo (ao menos no sentido mais tradicionalmente associado a este estilo artístico), mas, sim, uma visão de algo caricaturada de SS e do seu entorno - no qual orbitam pessoas/ personagens como Gugu Liberato, Roberto Marinho, Iris Abravanel, o assistente de palco Roque. A visão da série claramente faz jus à vida de alguém que sempre optou por se apresentar como uma caricatura.
O resultado, na primeira temporada de O Rei da TV, são oito episódios de uma narrativa exagerada, com muitos momentos engraçados, em que passado e presente se misturam em uma espécie de grande alucinação – o que faz lembrar um pouco das estratégias usadas por Guilherme Fontes no filme Chatô: o Rei do Brasil (2015), que também ousa ao contar a vida de outro gigante da comunicação de massa no Brasil.
O Rei da TV: entre o mito e o drama
(Fonte: Star Plus)Fonte: Star Plus
Considero muito oportuna a ideia de usar, como linha condutora, o episódio ocorrido em 1988, quando Silvio Santos descobriu pólipos na garganta que fizeram com que ele que tivesse que passar por um procedimento cirúrgico e corresse o risco de perder a voz. Como a série bem esclarece, isto significaria (ao menos na cabeça de Silvio) a destruição do gigantesco império de mídia que o apresentador conseguiu levantar, a duras penas, mesmo partindo de uma origem muito pobre.
Como é bem conhecido, Senor, um filho de imigrantes judeus, trabalhava como camelô no centro do Rio de Janeiro para ajudar a colocar comida na mesa. Diferente de seus outros concorrentes donos de emissoras, como Roberto Marinho, Silvio Santos não nasceu em berço de ouro - e o que configura como um self-made man e alguém que sempre foi próximo do povo.
Seus talentos para o comércio foram reconhecidos já no seu período de camelô. A voz imponente do adolescente logo lhe trouxe uma oportunidade no rádio, aproximando Senor do Silvio e, com isso, da grande paixão de sua vida: a comunicação com as grandes massas.
A partir daí, conforme a abordagem feita pela série, o apresentador não mediu esforços para atingir os seus objetivos. Ele é interpretado com muito vigor (e coragem) por três atores: Guilherme Reis, como adolescente; Mariano Mattos Martins, como jovem adulto; e José Rubens Chachá, na maturidade. Os dois últimos, em especial, fazem um trabalho magistral, ao dar luz a um Silvio Santos canastrão, obsessivo, carreirista – o que revela a ousadia de mexer com um ícone ainda vivo.
A presença dos três Silvios acaba funcionando em O Rei da TV como os eixos que fazem a narrativa percorrer diversos momentos da cronologia da história do apresentador: o casamento com uma namorada de infância, Cidinha (a ótima Roberta Gualda), que ele passa a esconder do público para se passar como galã; as ameaças causadas por Gugu (interpretado de forma divertidíssima por Paulo Nigro, que fez Chiquititas e várias novelas bíblicas da Record); o casamento com Iriz (a veterana atriz gaúcha Leona Cavalli) e a centralidade dela em sua vida e carreira; a relação controversa com os que seriam os seus braços direitos, Stanislau (vivido por Leandro Ramos e Emílio de Mello) e Cleusa (Larissa Nunes e Cassia Damasceno).
Imprecisões no roteiro?
(Fonte: Star Plus)Fonte: Star Plus
Algumas críticas sobre O Rei da TV apontam alguns erros que teriam sido cometidos no roteiro da série. A “acusação” envolveria imprecisões na muito conhecida história de SS, tanto em aspectos cronológicos, quanto a exageros envolvendo a sua dita trajetória mítica. Isto poderia se passar, por exemplo, em um certo diálogo que Silvio tem com o empresário Roberto Marinho, no qual é aconselhado a tomar cuidado com a Record, ou então na abordagem do episódio em que SS e seus asseclas precisam cortejar (de maneira bem literal) o general João Figueiredo (que várias vezes repete sua famosa frase “prefiro cheiro de cavalo a cheiro de povo”, coisa que certamente ele não fez naquela situação) para conseguir a concessão do SBT.
Acredito que é um equívoco considerar estas questões como erros. Por uma razão bastante óbvia: O Rei da TV não pretende ser uma versão oficial ou fidedigna à história de Silvio. Trata-se de uma série não autorizada, com muita liberdade poética para que a produção costure os pontos da trama da forma que achar melhor.
Como já argumentei neste texto, penso que o tom meio “tresloucado” da série casa muito bem com a persona que ela intenta retratar. Isto justifica, aliás, várias liberdades tomadas na narrativa, como o retrato de um Gugu abertamente gay, ou de uma diretora de televisão com fortes discursos feministas e que vai a festas de luxo vestida de smoking durante os anos 1970, algo que provavelmente não aconteceu.
Ao tratar toda esta história pelas tonalidades kitsch com as quais ela mesma foi pintada (tanto o SBT quanto seu dono sempre se colocaram como entidades assumidamente bregas, over, algo que se explicita em toda a cenografia), O Rei da TV acerta em cheio. E mais do que isso: dá um passo importante para a história da cultura popular brasileira ao criar uma memória audiovisual para um dos seus personagens mais marcantes. Que venha a segunda temporada.
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