Dahmer: série da Netflix expõe a última fronteira do true crime (crítica)
Sucesso absoluto de audiência na Netflix, a série Dahmer: Um Canibal Americano pode ser compreendida como uma incógnita. Afinal, como pode que tantas pessoas tenham passado 10 longas horas assistindo à reconstituição das atrocidades horrorosas cometidas pelo serial killer Jeffrey Dahmer? Como explicar que uma série com tantas cenas intragáveis tenha uma grande audiência mundial?
Penso que talvez possamos encarar Dahmer como um limite sobre até onde o gênero true crime pode ir. Explico: a série da Netflix, que tem produção de Ryan Murphy, propõe refazer a vida de um dos mais repugnantes serial killers que já pudemos conhecer.
Jeffrey Dahmer foi condenado pela morte de 17 homens, os quais assassinou entre 1978 e 1991. Ele tentava seduzir estes indivíduos (o que, a entender pela sua representação na série, era uma missão muito complexa para o homem desajeitado e carente que era) e, depois de matá-los, fazia sexo com seus corpos e os esquartejava. Alguns pedaços dos cadáveres eram guardados em sua casa ou devorados por Dahmer.
Como fica claro por esta breve descrição, tudo em torno de sua história é muito horrível. O que tem levado muitos críticos a pensar sobre quais seriam as reais intenções de Ryan Murphy (e da própria Netflix) a investir alto para contar esta história.
Será que finalmente chegamos em um ponto em que as últimas fronteiras do prazer mórbido por crimes reais foram ultrapassadas?
Dahmer: a história de uma vida perturbada
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Vale lembrar aqui que Ryan Murphy, um dos mais profícuos membros do showbusiness, tem uma excelente série de true crime. Falo de American Crime Story, que se lança à reconstituição de crimes famosos ocorridos nos Estados Unidos. Na primeira temporada, tratou-se dos assassinatos e do julgamento do jogador de futebol americano O. J. Simpson, acusado de matar a ex-mulher e um amigo dela. Na segunda, a série tratou do assassinato do estilista Gianni Versace em Miami. Na terceira, American Crime Story se debruça sobre o caso em torno de Monica Lewinsky, a estagiária que teve um caso com o ex-presidente Bill Clinton e enfrentou uma devassa completamente insana (e injusta) em sua vida, com óbvios contornos políticos.
Ocorre que American Crime Story, como se pode ver, vai muito além da parte “gráfica” de um crime. Ela quer entender o contexto, as consequências sociais, o quanto um crime famoso pode falar sobre o ambiente em que ele ocorre. O fato de que Ryan Murphy não colocou Dahmer: Um Canibal Americano como uma temporada de American Crime Story pode nos revelar muita coisa sobre as intenções do showrunner.
O que vemos, ao longo dos 10 episódios, é um claro esforço em reconstituir a vida desse sujeito. Filho de uma mãe narcisista e com depressão (diagnósticos impressionistas que coloco aqui apenas em cima do que a série mostra) e de pais que estavam sempre brigando, Jeffrey Dahmer (interpretado de forma competente por Evan Peters, que participou de quase todas as temporadas de American Horror Story, também de Murphy) sempre foi meio escanteado pela família.
Como o filho não tinha muito interesse por nada, seu pai resolveu estimular a única coisa que minimamente o motivava: a dissecação de animais. Passa então a ensiná-lo a como fazer isto em bichos mortos que coletam na estrada.
Dahmer então, pelo que a série nos sugere, cresce extremamente negligenciado. Quando seus pais se separam, ele já é adolescente. O pai (Richard Jenkins, de Six Feet Under) vai embora viver a própria vida e a mãe deixa a casa levando junto o irmão, não antes de fazer um discurso extremamente magoado em direção ao filho mais velho. O jovem Jeffrey Dahmer fica sozinho e parece se entregar de vez para uma vida absurdamente solitária e lasciva.
Transitando entre a extrema passividade e os impulsos agressivos, não demora muito para que Jeffrey comece a matar. Dando margem àquele ditado de “mente vazia, laboratório do diabo”, Dahmer vai descobrindo algumas facetas em si que parecem estranhas até para ele mesmo, como uma atração sexual por vísceras. É tudo muito perturbador – e exibido na série da Netflix de maneira muito gráfica.
A discussão sobre racismo
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Pelo menos metade dos episódios se centraliza nesta descrição mórbida dos crimes e da vida de Jeffrey Dahmer – algo que, em minha opinião, poderia ocupar bem menos tempo de tela. Digo isto porque a parte mais interessante de Dahmer: Um Canibal Americano está nas entrelinhas, em coisas que são mostradas, ainda que não exatamente ditas.
Muitas cenas de Dahmer dão a entender que vários crimes ocorreram porque o serial killer encontrou proteção institucional por ser branco e loiro. Destaco dois momentos em que isto fica bem claro: logo no primeiro episódio, que gira em torno da captura de Jeffrey Dahmer, uma vizinha (negra e pobre, a julgar pelo bairro e por sua casa), que divide o mesmo muquifo com ele, fala aos policiais que já havia ligado várias vezes para as autoridades relatando coisas estranhas e mau cheiro, mas nada aconteceu. A narrativa da série se dá ainda ao trabalho de reproduzir a ligação da mulher real que ligou para a polícia, deixando claro que esta queixa existiu e foi negligenciada.
A outra cena é quando Dahmer, após matar um homem, carrega pedaços do seu corpo em sacos de lixo e sai de carro, bêbado, para despachar a carga. Ele é parado por dois policiais, que vêem os sacos, perguntam do que se trata, ouvem uma desculpa esfarrapada e o mandam de volta para casa para não "estragar o futuro" dele. Há aqui, desenhada para que todos vejam, a própria noção de privilégio branco.
São cenas e momentos como esses que aproximam eventualmente Dahmer: Um Canibal Americano do trabalho importante que Ryan Murphy faz em American Crime Story. Mas será que é suficiente? E será que compensa todas as acusações de retraumatização das vítimas que perderam seus filhos nas mãos deste assassino, e que agora veem novamente a sua história recontada, sem que tivessem pedido por isso?
É difícil dar uma resposta, mas tendo a dizer que, em certa medida, Dahmer: Um Canibal Americano acaba servindo para expor o nosso próprio voyeurismo vazio que se explicita no fascínio por histórias de crimes.
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