Sandman vai muito além das expectativas - que eram bem altas (crítica)
Criar uma adaptação para os quadrinhos de Sandman, escritos pelo britânico Neil Gaiman, sempre pareceu uma espécie de tarefa maldita. Isto porque desde que a HQ foi lançada, há 32 anos, ela se tornou um verdadeiro fenômeno cultural, atraindo fãs apaixonados pelas histórias sobre Sonho (ou Sandman, ou Lorde Morpheus, dentre os vários nomes que ele carrega) e seus demais irmãos perpétuos.
A ótima notícia é que a série da Netflix está rendendo boas críticas e cumprindo (na medida do que é possível, claro) as expectativas de milhares de fãs. Vale lembrar aqui que um dos produtores da série é o próprio Neil Gaiman, o que deixou mais garantido de que Sandman fosse capaz de se manter fiel ao universo mágico e lúgubre que ele criou. Para sorte de todos – os que acompanharam e os que não acompanharam a famosa HQ – valeu a pena esperar por esta adaptação.
Em linhas gerais, a série visita a saga de Sandman, um dos sete perpétuos, que são entidades divinas antropomórficas. Os sete são irmãos, já que descendem de duas entidades maiores, a Noite e o Tempo, e controlam sete elementos da vida humana. Seus nomes, no original, começam sempre com D: Sonho (Dream), Desejo (Desire), Morte (Death), Destino (Destiny), Destruição (Destruction), Desespero (Despair) e Delírio (Delirium).
Mas como o próprio nome da HQ denuncia, esta é a jornada de Sandman, ainda que seus irmãos (que têm, cada um deles, um reino específico) também apareçam na trama da série. Ao começo do episódio 1, que se passa em 1916, sabemos que Sonho (vivido de maneira perfeita e melancólica pelo ator Tom Sturridge, que parece ter nascido para encarar este papel) foi capturado por um mago meio charlatão bastante sinistro – mas por acidente. Roderick Burgess (Charles Dance) queria, na verdade, capturar a Morte, para poder resgatar seu filho predileto, morto na guerra.
Sandman fica preso por cerca de 75 anos, submetido a situações horríveis e sem nada poder fazer. Até que algo acontece, e seu arco narrativo finalmente inicia. Agora, ele precisará buscar seus objetos que controlam o seu poder (seu saco de areia, seu elmo e seu rubi) para poder devolver à humanidade algo cuja importância nem ela talvez reconheça: o ato de sonhar.
Uma viagem ao mundo do sonho
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Claro está que Sandman não é uma série de ação – ao menos não de forma simples. Muito menos se trata de uma série de super-heróis, tais como tantas em voga atualmente (embora Sandman seja um produto da DC Comics, o que traz a possibilidade de vários outros desdobramentos da franquia). Os personagens trazidos aqui são todos densos, falhos, ainda que capazes de revelar muito conhecimento a partir do que puderam contemplar.
O que Neil Gaiman faz (com talento magistral) é adentrar no universo da mitologia - ou melhor, das várias mitologias que o homem foi capaz de criar e que até hoje o auxiliam a habitar o mundo. Quem viu Deuses Americanos, do Amazon Prime Video, também escrita por Gaiman, sabe que esta é a seara em que o autor transita brilhantemente.
Contudo, Sandman se centraliza em uma menor quantidade de mitos, e a história está mais interessada em revelar o que todos estes elementos, oriundos da ordem do incompreensível (como a morte, o sonho, o desespero, o desejo), nos fazem compreender sobre o que há no humano que, de alguma maneira, é próximo do divino.
Um dos aspectos mais interessantes da série da Netflix é ver o quanto Sandman nem sempre parece entender os corações dos reles mortais. Por um lado, cada confronto que ele tem – por exemplo, com Lucifer (vivida por Gwendoline Christie, de Game of Thrones, com quem batalha em uma inspirada rodada que poderia ter saído de um RPG) ou com o desgraçado John Dee (papel interpretado pelo respeitado ator britânico David Thewlis), que roubou seu rubi – é uma oportunidade única para que Sandman teça comentários marcantes sobre a essência humana.
Em outro aspecto, Sandman está sempre se surpreendendo (e se emocionando) com aquilo que vai descobrindo em seu caminho. Preste atenção no encontro em que tem com Hob Gadling (Ferdinand Kingsley), a quem ele concedeu o sonho da vida eterna como uma forma de provar que deixar de morrer é mais uma maldição do que uma benção.
Embora também seja pouco abordada nesta primeira temporada, a relação entre Sonho e Morte (interpretada por Kirby Howell-Baptiste, de The Good Place) é belíssima. A Morte – que, em Sandman, é muito mais suave e terna que o próprio Sonho, em um jogo muito interessante criado por Neil Gaiman – é fonte de sabedoria e participa de vários momentos em que deixa o irmão com lágrimas nos olhos. E é claro que nós, por tabela, também nos emocionamos.
Um saldo da primeira temporada de Sandman
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
Em resumo, a primeira temporada de Sandman se encerra com saldo muito positivo, cumprindo com louvor a expectativa que foi criada em torno desta adaptação. Sua estrutura é criada de maneira a cruzar tantos episódios de sequência cronológica, acompanhando a saga de Sandman, quanto alguns específicos que servem para construir outros personagens e nos situar dentro deste universo onírico, tão encantador quanto sombrio.
Alguns episódios, aliás, beiram o sublime. Destaco especialmente o quinto, que se passa dentro de um restaurante de manhã até a noite, e mostram um experimento macabro feito por John Dee, um dos personagens mais perturbadores da série; e o sexto, em que a adorável Morte cruza finalmente com a trama.
Embora não tenha ainda sido confirmada pela Netflix, a expectativa é de que a série se viabilize para próximas temporadas, explorando a complexidade de uma HQ amada por décadas e que durou 75 edições, dando um material vasto a ser abordado.
Além disso, Sandman parece conseguir cumprir um dos desafios mais difíceis deste tipo de adaptação, que é o transpor uma linguagem para outra bastante diferente. A série se revelou capaz de apresentar um universo para o sonho e para o pesadelo, para a vida dos homens e para a vida dos deuses – que, embora tão distantes, estão mais próximas do que se pode imaginar. Basta fechar os olhos para saber.
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