Ruptura é uma comédia que anuncia o fim do mundo do trabalho (crítica)
Há muita discussão rolando sobre como o trabalho deve ser encarado. Por séculos, simplesmente assumimos que as coisas eram como eram: para viver neste mundo, precisávamos ter um emprego que rendesse dinheiro; caso contrário, morreríamos de fome. Tínhamos, então, de achar uma empresa à qual poderíamos vender nossa força (normalmente mal paga, mas costumávamos relevar isso). Nem sempre tínhamos total ciência do que nós, na nossa insignificância, éramos capazes de causar quando desempenhávamos nossas funções.
Mas faz algum tempo que outros olhares foram colocados sobre essa suposta realidade — e a elogiada série Ruptura, da Apple TV, tem angariado ótimas críticas ao propor uma ficção científica capaz de "bagunçar" a forma como compreendemos nossa vida profissional.
Produzida e dirigida por Ben Stiller e estrelada por Adam Scott (de Parks and Recreations), Ruptura desenha um cenário bastante bizarro, mas que, se formos sinceros, não está assim tão longe do que acontece com boa parte de nós, os proletários (ou seja, os que vendem o trabalho ao invés de serem donos de empresas e darem as cartas do jogo).
A história envolve funcionários das indústrias Lumen, uma organização cujo setor ao qual pertence nunca dá para entender qual é com clareza. Aliás, é difícil até saber o que ela produz. Trata-se de uma empresa inovadora (ou, para usar um termo do universo corporativo, disruptiva): quem quer trabalhar nela passa por um processo de "ruptura" em que um chip é instalado no cérebro. Por consequência, cada vez que entra nas dependências da empresa, o funcionário se esquece da vida lá fora e adquire uma espécie de nova vida, que só existe quando está trabalhando. Dentro da companhia, ele é um innie e não sabe nada sobre o seu outtie.
Mark Scout (Adam Scott) é o líder de um setor de refinamento de dados, no qual trabalha com mais três funcionários. Ele parece ter optado por aceitar esse tipo de trabalho após enfrentar um trauma: a perda da esposa em um acidente de carro. Assim, ele escolhe passar 8 horas diárias nas quais se esquece da vida "real" e se aliena (literalmente) dos problemas.
O divórcio da realidade no ambiente de trabalho
(Fonte: Apple TV)Fonte: Apple TV
Essa alienação é uma maldição ou uma bênção? Poder se isolar de si mesmo é algo a se buscar? Os funcionários da Lumen parecem ter sensações diferentes a respeito disso. A recém-chegada Helly (Britt Lower) não consegue entender como os colegas conseguem desempenhar as funções sem saber exatamente para que elas servem.
Já o servil e organizado Irving (John Turturro) parece entrar de cabeça no espírito da empresa e permanece centrado na figura dos fundadores, o que dá ares de culto religioso à Lumen (e, aqui, há uma clara remissão dos tantos ambientes de trabalho que forçam os funcionários s uma espécie de submissão cega aos donos, impondo a eles pena de "morte" — ou seja, a demissão — caso não se adaptem).
Ao mesmo tempo, a empresa está simbolizada nos chefes, ou seja, nas figuras da sombria Harmony (Patricia Arquette) e do aspone Mr. Milchick (Tramell Tillman, que entrega a melhor performance da série). Ainda que a função deles, como a de todo chefe de uma empresa capitalista, seja motivar os funcionários para que eles continuem produzindo mais e questionando menos, não é isso o que conquistam.
O fim do mundo do trabalho
(Fonte: Apple TV)Fonte: Apple TV
Ruptura é daquelas séries às quais você assiste e sente a cabeça explodir. Por mais que seja uma ficção científica, é impossível não achar conexões com aquilo que acontece todos os dias em praticamente todos os ambientes de trabalho que existem. A grande questão é que não há muito questionamento — pela simples razão de que o sistema depende dessa acomodação para seguir girando.
Nesse sentido, os personagens operam quase como se fossem os nossos próprios alter egos, expressando inquietações que costumam ficar nos cantos da mente. Mark Scout, o funcionário exemplar, é um sujeito bem-intencionado que quer ser justo com todos — ainda que não se dê conta de que, muitas vezes, isso significa agir em prol de algo em que não acredita. Helly, por outro lado, personifica a rebeldia adormecida em todo trabalhador. Já Dylan (Zach Cherry) representa aquele funcionário cínico que, embora não concorde com o que faz, não consegue achar opção melhor.
Questões profundas vêm à tona a cada episódio: quem somos nós e em que medida a nossa essência se divorcia daquilo que fazemos em vida? É possível sustentar essa separação por muito tempo? E quais são os custos de tudo isso para a alma?
E talvez o mais incrível de Ruptura é que ela não é (ou ao menos não apenas) uma série de suspense e ficção científica. Boa parte das cenas, na verdade, é cômica ao explicitar quão ridículos são os rituais que transcorrem nos ambientes de trabalho, como eventos aleatórios (na série, são as hilárias festas da melancia e do ovo, que são promovidas para entreter os funcionários) e prêmios baratos que buscam recompensar aqueles que colaboram com a companhia.
Um contraponto genial que é gerado ao discurso servil da empresa está em um autor de autoajuda que, na verdade, é o cunhado de Scout. Ricken Hale (Michael Chernus, de Orange is the New Black) é um sujeito meio desconstruidão que vive dos livros que lança como uma espécie de coach de estilo de vida, dando conselhos de como o trabalho é inútil e como o bom mesmo é ser livre.
Quando a nova obra dele cai por acaso dentro da Lumen e é encontrada pelos funcionários, ela começa a ser lido como um receptáculo de grandes verdades, tal como uma bíblia contemporânea. Existe nessa parte, talvez, uma espécie de crítica à falta de sentido do mundo do trabalho, sustentado por premissas frágeis e em que os discursos se esvaem com muita facilidade. E, na falta de boas explicações, qualquer ladainha passa a servir.
Incômoda e divertida, Ruptura consegue ir além do entretenimento e anunciar uma verdade: a realidade do trabalho, tal como ela existia até aqui, já tem a morte anunciada. A questão agora é descobrir para onde vamos. Nesse meio-tempo, essa série imperdível é um ótimo convite para pensar sobre o assunto.
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