Hacks: 2ª temporada dá novas camadas à comédia da HBO (Crítica)
Hacks foi uma das grandes surpresas dos catálogos de streaming em 2021. A comédia da HBO sobre a parceria muito improvável entre duas humoristas de diferentes gerações (a veterana Deborah Vance, interpretada magistralmente por Jean Smart, e a roteirista Ava, vivida pela novata Hannah Einbinder) conquistou muita gente que se deleitou com a chuva de piadas (algumas bem maldosas) que nasciam em cada episódio.
A sacada de Hacks é muito inteligente. Ao aproximar uma velha estrela, meio em decadência, e uma escritora de humor que acabou de ser cancelada na internet (e na vida), a trama tem a chance de desenrolar vários temas interessantíssimos. O mais óbvio é o conflito geracional, pois Deborah tem idade para praticamente ser avó de Ava (o que dá uma pista do quão irritante é ter que trabalhar com ela).
Mas há outras discussões muito relevantes, como o que significa ser mulher em um ramo machista, o quanto o humor melhorou com o passar dos anos ou apenas encaretou, se os jovens são arrogantes ou se os velhos são apenas ranzinzas etc.
Ou seja: o sucesso de Hacks se deve, em parte, pela capacidade de tematizar — de forma leve e sempre cômica — assuntos que são essencialmente densos. Jean Smart (vencedora do Emmy em 2021 pelo papel) e Hannah Einbinder defendem as personagens em uma espécie de luta cômica de esgrima bastante fascinante, na qual é difícil para o espectador torcer para qualquer uma das duas.
A 1ª temporada se encerrou com um cliffhanger bem colocado. Depois de muitos conflitos, Deborah e Ava aparentemente se acertam quando a veterana vai, inesperadamente, ao velório do pai de Ava. Mas aí uma bomba estoura: em um dia no qual estava fula e meio drogada, Ava manda um e-mail vazando um monte de reclamações sobre a chefe para os produtores de um novo programa.
Será que Deborah vai descobrir — e, caso descubra, será que a relação entre as duas estará arruinada para sempre?
Ascensão e queda de uma estrela
(Fonte: HBO)Fonte: HBO
A grande graça de Hacks é que ela é uma comédia agridoce. Dá para rir o tempo todo, mas esse riso tem sempre algo de melancólico; muitas vezes, é quase como uma risada envergonhada e mesmo empática às situações vividas pelas duas protagonistas. Na 2ª temporada, sabemos que Deborah perdeu definitivamente o posto em um hotel de Las Vegas. Está, portanto, um pouco perdida quanto ao que fazer com o legado dela — se é que ela ainda tem um.
É um desdobramento bastante triste e coincidente com o de tantos artistas que se sentiram, na velhice, menos importantes e lembrados, como se tudo o que fizeram no passado não servisse para mais nada. Para fugir do ostracismo, Deborah resolve, então, fazer uma turnê na estrada, com shows em cidades do interior, enquanto trabalha em um novo material. A bomba do e-mail, no entanto, segue pairando sobre a cabeça de Ava.
A dinâmica entre Deborah e Ava se constrói muito nos momentos em que elas discutem roteiros e tentam descobrir se o que Deborah acha engraçado tem ainda espaço no mundo de hoje, em que piadas politicamente incorretas são execradas. Parte do problema é que, em Las Vegas, a veterana se apresentava para um público cativo de anos (o que incluía stalkers). Agora, na estrada, ela vai ser desafiada a testar novas audiências.
Certamente, não era o desejo dela sair da zona de conforto, mas, sem essa virada, talvez Hacks não tivesse motivos para seguir em frente. O resultado dessa jornada (literalmente) de Deborah, Ava e do resto da trupe em um ônibus luxuoso que atravessa os Estados Unidos é, conforme era de se esperar, bastante transformador — para eles e para quem assiste à série.
A ida para a estrada é um excelente mote para que Deborah se confronte com uma dura realidade: a queda dela enquanto uma estrela do humor é real. Comediantes da internet a substituem nos locais mais tradicionais; para ela, pelo visto, só restam os palcos itinerantes do interior. Assim, passa a cantar em feiras agrícolas (e perde a atenção para o nascimento de um bezerro em uma cena hilária) e em um cruzeiro de lésbicas (o que a faz enfrentar um tipo de público que despreza, com consequências nada agradáveis).
O confronto com o interior
(Fonte: HBO)Fonte: HBO
Eu diria que um dos grandes temas de Hacks é o enfrentamento interior que acomete cada uma das personagens da série. Uma leitura superficial apontaria os limites da comédia, mas penso que são dilemas bem mais profundos. Todas as figuras mais proeminentes na trama estão tendo que encarar as próprias sombras. Marcus (Carl Clemons-Hopkins), o gerente da marca Deborah Vance, perde o namorado e precisa lidar com um fato bem complicado: a vida dele não tem muito sentido para além do trabalho.
Já Deborah, mais uma vez, fica diante das consequências das escolhas que faz. O preço pago pela carreira — o que envolve o relacionamento ruim com a filha DJ (Kaitlin Olson), severamente negligenciada desde a infância — se torna mais expressivo quando ela encontra uma antiga colega que não deu certo como comediante. Para completar a crise, os frutos do sucesso dela estão se esvaindo aos poucos. Deborah está tão desesperada que passa até a correr atrás dos stalkers de quem antes fugia.
Já Ava, como era de se esperar, continua sendo uma grande bagunça, uma personagem que oscila entre o egocentrismo e as chamadas para a realidade que a vida constantemente lhe dá. A morte do pai oferece a oportunidade para que ela encare as prioridades e os rumos que tem tomado nos últimos anos.
Não que haja muita redenção para Ava e Deborah: elas seguem patinando e sendo más uma com a outra, mesmo que seja evidente que, de um jeito bem peculiar, elas se amam. E é justamente isso o que faz Hacks ser uma série comovente em tantos aspectos, ainda que sempre bem engraçada. Sem dúvida, a 2ª temporada da série não deixa a desejar e faz que continuemos interessados nessa dupla impagável.
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