Wolf Like Me: uma sombria comédia romântica com lobisomens (crítica)
Quem gosta de horror costuma ter uma boa noção de que os seres míticos que circulam nos filmes e livros deste gênero representam coisas além deles mesmos. Os zumbis, por exemplo, podem operar como metáforas da exclusão social de tantos sujeitos espalhados pelos países, como os refugiados; os vampiros podem trazer à tona o nosso desejo inconsciente por uma vida eterna com a plena satisfação de nossas vontades. Por isso, daria para dizer que todos estes personagens sobrenaturais tendem a nos colocar em contato com algo que é essencialmente humano.
Wolf Like Me é uma série curta de 6 episódios, do Amazon Prime Video, que, como o título já sugere, traz o emblema do personagem lobisomem, um humano que se transforma em lobo em noites de lua cheia e precisa satisfazer os seus impulsos de matar e comer carne.
No caso desta série, há algumas inovações interessantes. Primeiro: o lobisomem é uma mulher, e não o homem. Segundo: não se trata de uma série de horror. Arrisco dizer que daria para categorizar a série como comédia romântica – bem sombria, mas ainda assim.
(Fonte: Amazon Prime/ Divulgação)Fonte: Amazon Prime
A história contada aqui é relativamente simples. Em Adelaide, na Austrália, um homem ferido por uma tragédia pessoal (sua mulher faleceu recentemente de câncer) tenta levar a vida junto à filha, igualmente traumatizada, que tem frequentes ataques de pânico. A primeira cena do primeiro episódio, em que ele está levando um fora em um encontro, já esclarece: seu coração está fechado e ele não consegue mais formar vínculos românticos.
Um dia, este sujeito, que se chama Gary (papel vivido pelo ator Josh Gad) se envolve num acidente violento em que seu carro é atingido pelo de uma mulher bonita, chamada Mary (personagem de Isla Fischer). Imediatamente, a filha, que está junto no carro, tem um ataque de ansiedade, mas Mary, meio que milagrosamente, consegue acalmá-la de uma forma que o pai nunca conseguiu.
Aparentemente, há algo de mágico neste encontro cercado de coincidências entre dois americanos, que vivem como imigrantes na Austrália, e parecem estar emocionalmente devastados. Ele lida com o luto e a dificuldade em se conectar com a filha; ela perdeu o marido durante uma viagem e guarda um segredo – cujo título já entrega, então não é exatamente um mistério para o espectador.
A trama, ao longo dos seis episódios, irá se desenrolar em torno de um mote que, no mínimo, é bastante antigo: é possível haver um relacionamento entre um humano e um “monstro”? Há possibilidades deste encontro amoroso vicejar sem que o lado humano corra risco? O lobisomem, assim como os outros seres sobrenaturais da ficção, representa o que há de animal no humano, os impulsos que não se pode controlar – entrando aqui também o desejo pela morte.
Uma ode ao amor – e às dificuldades que ele traz
(Fonte: Amazon Prime/ Divulgação)Fonte: Amazon Prime
A boa sacada de Wolf Like Me é que ela faz uso do mote do encontro humano/animal para discutir as possibilidades do encontro amoroso. Um pouco como já acontecia em filmes e séries famosas, como na franquia Crepúsculo ou na série True Blood. Mas há uma diferença aqui: Wolf Like Me contextualiza isto na vida de duas pessoas na casa dos 40 anos, já calejadas pela vida, que parecem tomadas pelo medo.
No caso de Gary, ele foge de ter que lidar com as questões de intimidade que os relacionamentos exigem; no de Mary, ela teme revelar o seu self em seu aspecto mais sombrio e repulsivo (simbolizado, é claro, no fato de ela ser lobisomem).
Na trama, Mary é formada em Psicologia, mas não atende em consultório. Seu trabalho é escrever uma coluna de aconselhamento na internet, trazendo respostas inspiradoras a questionamentos cheios de angústia. Logo, a série vai se aproveitar desta ideia da coluna na condução da história: alguns “conselhos” que Mary dá, em uma narrativa colocada em off, se referem aos problemas que ela e Gary enfrentam individualmente.
E, em resumo, os problemas giram em torno da grande dificuldade de se entregar novamente ao amor quando já se sofreu antes. Para as pessoas na casa dos 40 anos, que talvez já tenham um histórico de muita desilusão, ou mesmo de casamentos fracassados, esta é uma mensagem poderosa e de fácil identificação. Mary exemplifica bem este drama com o seu segredo, pois sua parte “monstruosa” é realmente difícil de ser encarada até mesmo por ela. Mas Gary funciona como um belo contraponto de como esta insegurança é algo universal – e não temos outra opção a não ser lidar com ela.
Uma série com momentos irregulares
Wolf Like Me é uma série fofinha, ainda que obscura, com alguns momentos irregulares. Como são poucos episódios, o arco entre a rejeição de Gary ao lado lobisomem de Mary para o aceite parece se dar rápido demais. Não dá para acreditar muito que ele seja tão incisivo em sua decisão de não se envolver com Mary e, no minuto seguinte, eles estejam em um relacionamento super sério.
Mas a série também traz vários trunfos. Incluiria aqui a participação de destaque de Emma (Ariel Donoghue), a filha complicada de Gary. A jovem atriz sustenta bem uma interpretação de uma pré-adolescente que ergue uma barreira não apenas em relação ao pai, mas ao mundo externo em geral. A comunicação dela, depois de tanto sofrimento, parece um tanto truncada – até que Mary encontra a chave.
Esteticamente, a série também se destaca pelos belos cenários australianos, pela direção de fotografia bastante inspirada e pela remissão a alguns elementos que se tornam simbólicos na trama. Um deles são as músicas da banda Queens of the Stone Age, que ouvimos em vários momentos – incluindo a potente vinheta de abertura, em que “If I had a tail” toca enquanto vemos a transformação estilizada do lobisomem, e a bela “Fortress”, que faz Mary lembrar de seu falecido marido e é usada para acalmar Emma em momentos difíceis.
É um perfeito casamento entre história e música: a letra de “Fortress” fala com alguém cujo “coração parece uma fortaleza. Você mantém seus sentimentos trancados. É mais fácil assim? Você se sente seguro assim?”. E, noutro trecho, indaga: “você vagueia atrás da escuridão. Do deserto atrás dos seus olhos. Eu sei que você está com medo, mas é preciso seguir em frente”. Uma tradução muito fidedigna da história contada aqui.
Talvez Wolf Like Me não seja a melhor série do ano, mas uma coisa é certa: ela é capaz de comover os tantos corações solitários que vagueiam por aí.
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