Euphoria e o desafio de falar sobre (e com) os jovens (crítica)
De tempos em tempos, aparece algum filme ou série que volta a levantar perguntas bem velhas: o quanto um produto cultural consegue influenciar uma camada da população? É possível, por exemplo, que passemos a ter certas atitudes por que fomos “estimulados” por personagens da ficção?
Esses questionamentos retornam especialmente quando são lançadas produções destinadas a grupos considerados mais vulneráveis, como os adolescentes. E talvez poucas séries recentes tenham causado tanto furor (o que envolve tanto elogios quanto críticas) quanto Euphoria, o drama sobre adolescentes da HBO que gerou uma espécie de culto mundial em torno de suas personagens.
Milhões de pessoas no mundo todo estão discutindo agora os rumos nas vidas de Rue (a protagonista, vivida pela atriz sensação Zendaya) e as de suas amigas e amigos. Só para se ter uma ideia, o episódio de estreia da segunda temporada foi visto por mais de 19 milhões de pessoas na plataforma de streaming HBO Max.
(Fonte: HBO)Fonte: HBO
Para início de conversa, vale reiterar: Euphoria não se apresenta enquanto uma série adolescente. Sua classificação etária é 18+, o que traz um ângulo mais amplo para a exibição de cenas que, para alguns espectadores, talvez sejam consideradas muito explícitas, como as que envolvem sexo (há, inclusive, toda uma discussão entre os fãs sobre se o roteiro de Euphoria estaria objetificando as atrizes) mas, especialmente, o uso de drogas.
A personagem principal, Rue, que atua como um fio condutor – fazendo, inclusive, a narração em off dos episódios – é viciada em opioides, e boa parte das temporadas explicita todas as camadas de problemas gerados pelo seu vício.
É claro que a classificação etária posta em um produto não irá exatamente espantar os espectadores mais jovens – e, no caso dessa série da HBO, o culto que se expressa em torno das personagens, especialmente em plataformas como TikTok, mostra que os adolescentes também estão mergulhados no mundo de Euphoria. Isto envolve, sobretudo, a parte estética, como os figurinos e o estilo de maquiagem usado pelas personagens femininas. Mas a verdade é que Euphoria, independente do que digam, é uma série muito bem dirigida e, por que não dizer, apaixonante.
Personagens de “carne e osso”
(Fonte: HBO)Fonte: HBO
Se Euphoria tem alguma pretensão, daria para dizer que é o de fazer um retrato (parcial, que seja) de uma chamada geração Z, os jovens nascidos a partir dos anos 2000. Rue, já no primeiro episódio, relata que nasceu 3 dias depois do fatídico 11 de setembro de 2001, quando uma camada do mundo ocidental viu ruir boa parte de suas esperanças quanto ao futuro que se desdobrava no horizonte.
Esses novos seres humanos que chegaram à terra nesta época cresceram com algumas especificidades: eles não viram um mundo sem internet. Aprenderam a conviver com a onipresença de smartphones desde pequenos. Foram introduzidos a uma sexualidade mais fluida, sem os mesmos tabus de gerações anteriores, com menos culpas e moralismos.
E, talvez mais que tudo, foram criados em um ambiente em que velhas certezas (como, por exemplo, a de que uma boa vida envolvia necessariamente a construção de uma carreira sólida, que a estabilidade deveria ser sempre uma meta final) foram postas à terra. Os grandes pilares que sustentavam nossos desejos e anseios eram frágeis e se vergaram com relativamente facilidade.
Penso que este é o contexto em que a história de Rue e suas amigas se desenrola. Elas são todas estudantes de ensino médio em uma cidade interiorana nos Estados Unidos, que não chega a ser identificada. O contexto “subúrbio” aqui tem muita importância, uma vez que, muitas vezes, é justamente no interior, onde o tédio impera, que os comportamentos excessivos (como o abuso de drogas) tendem a vir à tona. Todas as meninas ali estão tentando levar suas vidinhas e encarando os dramas que as cercam com a maior seriedade possível – como todo adolescente costuma fazer.
Mas Euphoria não é leve. Na verdade, é uma série bastante sombria, com temas densos e cenas bastante pesadas. Para começar, a própria Rue tem um trauma particular, envolvendo a morte de seu pai por câncer e a consequente sensação de desamparo que ela sente. Vale destacar aqui que quase todos os personagens têm problemas sérios com seus progenitores: as irmãs Lexi (Maude Appatow) e Cassie (Sidney Sweeney, de The White Lotus) vivem com a mãe alcoólatra e foram abandonadas pelo pai viciado em drogas; Fezco (Angus Cloud) e Ashtray (Javon Walton), dois adolescentes traficantes, foram abandonados e criados por uma “avó” mafiosa; Maddy (Alexa Demie) cresce dividindo a casa com pais que mantêm uma relação de indiferença. E Nate Jacobs, uma espécie de vilão, tem uma história complicadíssima com o pai, Cal (Eric Dane, de Grey’s Anatomy), que descobre ter por anos relações homossexuais escondidas, inclusive com menores de idade.
A riqueza deste elenco de personagens se dá pela construção multifacetada que é feita de cada um deles. Cada episódio de Euphoria nos oferece um mergulho dentro de suas histórias, e assim temos contato não apenas com suas motivações, mas também com as possíveis consequências de seus traumas. Cassie, por exemplo, lida com a ausência do pai agindo de forma extremamente carente e vulnerável a qualquer sinal de amor que ela acredita estar vendo em homens. Já Jacob e Maddy estão presos num relacionamento tóxico e violento, mas não conseguem se afastar um do outro.
O roteiro de Euphoria, portanto, é muito sagaz. Às vezes, há alguns detalhes colocados no texto que dizem muito sobre o retrato geracional que pretende fazer. Um deles, por exemplo, é a quantidade de vezes que os personagens dizem “eu te amo” uns para os outros – mesmo em situações de abuso ou de claro desamor. Há aqui uma espécie de comentário sobre a fluidez nas relações destes jovens, mas também sobre o absoluto vazio que cerca as suas vidas.
A qualidade estética de Euphoria
(Fonte: HBO)Fonte: HBO
A esta altura, algum leitor pode estar pensando: mas todos estes elementos já foram vistos muitas vezes em séries sobre adolescentes? E a resposta é: sim. Pegue, por exemplo, a clássica Beverly Hills 90210 (produzida entre 1990 e 2000 pela Fox e exibida no Brasil com o nome Barrados no Baile) e tudo estará lá: drogas, bullying, sexo, aborto, abandono. Mas aqui chegamos na grande qualidade de Euphoria, que diz respeito ao apuro estético e à sofisticação da narrativa usada para contar esta história.
Como já disse, Euphoria é uma série sombria, literalmente: sua direção de fotografia privilegia uma iluminação sempre meio lúgubre ou em tons saturados, que tendem a colocar o espectador sempre numa sensação de semi-desconforto (há relatos de fãs, inclusive, que preferem assistir a série com os amigos para evitar crises de ansiedade).
Além disso, o showrunner Sam Levinson (ele mesmo, um diretor jovem, com 36 anos) empresta a Euphoria um tipo de tratamento narrativo que se situa entre o realismo e o delírio, a literalidade e a fantasia.
As cenas em torno dos personagens costumam ser intercaladas com momentos com fins exclusivamente estéticos – como uma cena em que Jules (Hunter Schaffer) é enquadrada numa espécie de colagem como se fosse a Vênus de Milo, ou quando Rue conta detalhes de sua vida com as drogas falando diretamente ao espectador, quebrando a quarta parede, como se fosse uma professora dando uma aula. É uma estratégia que parece criar uma narrativa fluida, em que ilusão e realidade se misturam, e que proporcionam uma estética exclusiva que os fãs podem cultuar.
Preste atenção na beleza dos dois últimos episódios da segunda temporada, em que uma peça é montada e acaba servindo para organizar a trama em torno das meninas (pareceu-me, talvez, algo próximo de uma homenagem ao filme Boyhood).
Estes dois episódios simultaneamente belos, comoventes e chocantes – tal como a própria fase da adolescência, nem feia nem bonita, apenas é o que é.
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