Casamento às Cegas testa os limites dos constrangimentos amorosos (crítica)
Estamos vivendo uma pequena febre de reality shows sobre relacionamentos e conquistas amorosas de todo tipo. As opções vão desde 90 dias para casar, da TLC, até os encontros fugazes do De férias com o ex, na MTV.
Embora programas sobre paquera não sejam exatamente uma novidade na TV (quem lembra do bailinho do Silvio Santos no programa Em nome do amor?), há algo de muito fascinante em olhar outras pessoas tentando conquistar o amor “verdadeiro”. Talvez porque essa seja uma experiência que envolva um tanto de constrangimento, nós nos divertimos vendo os outros entrando neste jogo em que tudo é sempre incerto.
O programa Casamento às Cegas, da Netflix, tornou-se uma franquia de sucesso no mundo inteiro, com versões em três países (tem o original americano, a brasileira e uma recém lançada versão japonesa).
A premissa é bem interessante: o reality show propõe a fazer um “experimento” que envolve colocar solteiros em cabines isoladas para que tenham encontros às cegas uns com os outros. Eles conversam através das paredes, sem se verem, e têm um prazo para decidirem se irão fazer uma proposta de casamento para algum pretendente.
A ideia é promover o “amor às cegas”, que é o título original do programa, love is blind – ou seja, um encontro amoroso, que elimine o fator “aparência”, tido como superficial e descartável. É uma lógica que sugere que a conexão física e o desejo sexual sejam fatores menos importantes no relacionamento de um casal, o que, como sabemos, não é exatamente uma verdade.
De todo modo, a proposta de Casamento às cegas é a de colocar o espectador nessa indagação: você aceitaria se casar com uma pessoa que nunca viu? E há alguma chance de um compromisso firmado na fase da paixão, no momento em que estamos totalmente encantados pelo nosso par, vir a dar certo?
A graça de assistir a um reality show sobre esse assunto, claro, é que a dinâmica dos relacionamentos é sempre viva, uma vez que cada participante novo proporciona vivências inéditas a partir de sua própria experiência. Em outras palavras, a “dança do acasalamento amoroso” é orgânica e há sempre novas maneiras de se emocionar - e se constranger - na busca de um parceiro.
Na temporada dois do Casamento às Cegas americano, tem de tudo: mulheres que sofreram violência sexual, um homem que foi parar na UTI depois de levar uma facada de um amigo, uma moça com uma insegurança crônica que a faz sempre desconfiar das intenções de qualquer um que se aproxime dela.
Encontros e desencontros
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
A Netflix disponibilizou 5 episódios inicialmente da segunda temporada norte-americana, numa estratégia semelhante à usada na temporada anterior e também na brasileira: a de gerar repercussão e conversa nas redes sociais sobre os participantes e os episódios, para só então entregar o que aconteceu com eles (ou seja, se eles vão casar ou não depois de quatro semanas).
É claro que, num programa como Casamento às cegas, o flerte é apenas uma parte da experiência de constituição de um casal – e nem é a mais importante. A parte central do programa é sempre o conflito que se dá depois da formação dos pares, quando os “noivos” são levados para um resort no México e precisam conviver durante quatro semanas para decidir se vão, de fato, aceitar se casar – sob as lentes do programa, é lógico, numa espécie de grand finale de novela.
A julgar pelos cinco primeiros episódios, esta é uma temporada carregada de emoções. A começar pela concretização daquele poema do Drummond do “João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém”.
O desencontro do amor é a tensão inicial entre os casais em potenciais. Jarette se declara para Mallory mas gosta também de Iyanna. Shayne seduz Natalia e Shaina, que também se envolve com Kyle (os resultados destes matches, para escapar dos spoilers, não direi aqui).
No meio de todo esse caldo, há várias nuances que dão margem a discussões sobre xenofobia, gordofobia e as consequências devastadoras de uma baixa autoestima. Em um episódio um tanto revoltante, um participante indiano chamado Shake diz para uma das pretendentes que tenta conquistar, indiana com ele, que só se envolve com mulheres loiras. Em seguida, pergunta se ele conseguiria colocá-la nos ombros durante um show. As reações da moça, por sorte, são desfavoráveis a Shake.
O insustentável constrangimento da dança amorosa
(Fonte: Netflix)Fonte: Netflix
A julgar pelos episódios disponíveis, dá para dizer que os casais foram escolhidos a dedo. Digo isso porque, como vemos no primeiro episódio, há vários outros participantes que acabam não sendo aproveitados pela narrativa - o que sempre gera algum burburinho nas redes sociais sobre as razões que levam a produção do programa a "apagar" algumas histórias e valorizar outras.
Aqui entro em alguns spoilers, então, caso não tenha visto o reality, pule três parágrafos. É interessante notar que Casamento às Cegas reflete várias questões que hoje pulsam na sociedade, como uma visão negacionista de mundo, observada, por exemplo, nas pessoas que acreditam que a terra seja plana ou que as vacinas inserem chips que modificam o DNA dos seres humanos.
Há um casal que se forma com uma mulher declarada cristã, e defensora do criacionismo (a crença de que o mundo teria começado com Adão e Eva e não com o Big Bang), que vai parar ao lado de um ateu. Teria alguma chance de esse relacionamento vingar?
Outra reflexão, mais universal, que é sugerida pelo programa é o quanto é necessário se adaptar para poder se unir a uma cara-metade. Todo mundo que já esteve um relacionamento sabe bem que conviver com um par é sempre como andar sobre uma corda bamba: relações saudáveis são compostas por sujeitos que conseguem ser flexíveis, ao mesmo tempo que mantêm-se fiéis aos seus próprios limites. Por isso, é meio impactante ver, em Casamento às cegas, um homem comer carne depois de 8 anos como vegetariano para tentar agradar uma mulher.
A graça de ver tudo isso, me parece, reside em um misto de reconhecer-se naquelas situações (que jogue a primeira pedra quem nunca amou e não foi correspondido, ou ficou indeciso entre dois pretendentes) e ficar aliviado, de que, pelo menos desta vez, não é a gente que está se metendo nessa.
Como as possibilidades de tramas amorosas são infinitas, é de se esperar que a franquia Casamento às cegas nos prenda ao longo de muitas outras temporadas.
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