Succession: por que a série da HBO é tão boa? (crítica)
Se você não habita em Marte, dificilmente escapou de acompanhar o buzz em torno de uma série dramática chamada Succession, da HBO e HBO Max. Aparentemente, muita gente ao redor do planeta está mergulhada na história da família Roy, e celebrou o fato de que a série, que está iniciando sua terceira temporada, já foi renovada para uma quarta. Por isso, proponho aqui tentar esmiuçar os meandros desse fenômeno: afinal, por que gostamos tanto de Succession, apesar de ser uma trama absolutamente incômoda e repleta de personagens desagradáveis?
É claro que há várias camadas para essa resposta, o que já nos traz pistas em torno de todo esse sucesso. A série da HBO, quando olhada em sua superfície, parece fácil de ser explicada: é uma saga familiar em que pessoas ridiculamente ricas (os Roy, donos do quinto maior conglomerado de mídia do mundo, a Waystar Royco) tentam lidar uns com os outros. O mote que impulsiona a trama, como o próprio nome da série sugere, é a sucessão do império – Logan Roy, o patriarca, completa 80 anos no primeiro episódio, e paira no ar a tensão sobre qual dos filhos irá substitui-lo na presidência da empresa.
Talvez você esteja pensando: dramas familiares permeados de ódio, inveja e afeto são recorrentes na ficção. Então, o que há de tão fascinante nos Roy? A chave para entender isso está na qualidade do roteiro e, claro, na construção dos personagens. Todos eles, aliás, são absolutamente intragáveis. O pai, Logan, é um sujeito autoritário e pouquíssimo simpático, acostumado a resolver todos os problemas com dinheiro, e claramente vê os filhos mais como funcionários incompetentes do que como sua prole. Os quatro herdeiros tiram proveito da vida milionária de formas diferentes: seja rebaixando os que estão em sua volta, seja “comprando” o amor dos outros, seja agindo como se nada disso importasse. Os demais personagens que gravitam em torno dessa família são interesseiros que escondem aquilo que pensam em nome de possíveis vantagens (ou seja: grana e poder).
Em suma, é praticamente impossível simpatizar com alguém na série. Então por que nós, os espectadores, estamos tão obcecados por Succession? Como já sugeri acima, a série, do showrunner Jesse Armstrong, tem como grande diferencial a construção de um texto multifacetado, em que várias leituras são possíveis. É difícil encerrar um episódio sem ficar depois analisando as ações e as intenções dos personagens, e captando pistas sutis sobre o que pode estar acontecendo dentro de cada um deles. De modo muito inteligente, em Succession, nada é posto ao espectador de forma fácil. A grande pergunta da série, que engloba todas as demais dúvidas, talvez possa ser assim definida: se todo mundo naquele grupo é profundamente infeliz, cada qual à sua maneira, por que então não se afastam deste nocivo núcleo familiar?
E é a partir disso que Succession vai revelando a sua grande qualidade: as questões familiares, como cada um de nós pode testemunhar, são sempre muito mais profundas do que as palavras conseguem expressar. Dito de outra forma, as relações familiares, como pode explicar qualquer psicólogo, são o cerne do que estrutura o nosso âmago, e por isso simplesmente cortá-las nunca é uma opção (ou pelo menos, uma opção fácil e desprovida de sofrimento). A vida dos Roy, portanto, tem muito a ver com a nossa própria vida, e por isso todos os rolos desses parentes são quase hipnotizantes – é impossível virar o rosto, tal como um acidente horrível que você não consegue não olhar.
Vejamos como isso se desdobra na série. Não há dúvida de que o protagonista da série é Kendall (vivido por Jeremy Strong, vencedor do Emmy pelo papel), o segundo dos quatro filhos de Logan Roy (Brian Cox). Como vemos no primeiro episódio da primeira temporada, ele é visto como um sucessor natural ao pai – o filho mais velho, Connor (vivido por Alan Ruck, famoso pelo papel de melhor amigo de Ferris Bueller em Curtindo a Vida Adoidado), é claramente fora da realidade. Os demais irmãos são Roman (Kieran Kulkin), um tresloucado que personifica o estereótipo do milionário fanfarrão) e Siobhan, ou simplesmente Shiv (Sarah Snook), a única mulher – e que, de certa forma, é a menina dos olhos de Logan, mas preterida frente aos irmãos no que tange sua presença nos negócios da família.
Ao longo das três temporadas, inúmeras situações vão transcorrendo e complicando essas histórias, e logo vamos descobrindo que as dores que os Roy escondem sob sua fachada de família bem-sucedida são infinitas. As camadas dessas relações aparecem nas especificidades do trato do pai com cada um dos filhos e dos irmãos entre si. O que se nota é que há um roteiro construído por um sujeito (ou sujeitos) que conhece a teoria psicanalítica e joga pistas disso ao longo do texto. No fim das contas, a trama central aqui é a ideia de um pai superpoderoso que massacra os filhos (metafórica e literalmente), ao mesmo tempo que sabe que precisa ser sucedido por um deles, que irá matá-lo (metafórica e – talvez – literalmente).
Não por acaso, são recorrentes as referências à história de Édipo Rei, de Sófocles, que é uma peça central no conceito de Complexo de Édipo criado por Freud. Na narrativa clássica, Édipo é um jovem amaldiçoado pelos deuses: quando crescesse, ele mataria seu pai e casaria com a mãe. Seu pai, sabendo da maldição, abandona o filho ainda bebê, mas ele sobrevive, e um dia, numa viagem, entra em uma briga com um andarilho e acaba matando-o. Era o seu pai. Mais tarde, ao chegar na cidade, acaba se casando com uma mulher, Jocasta, que não sabia ser a sua mãe. A história termina em tragédia: Jocasta se mata e Édipo fura os próprios olhos.
A trama familiar entre pai e filhos em 'Succession' é repleta de amor e mágoa.Fonte: HBO
Essa narrativa, uma das mais conhecidas da humanidade, é uma metáfora usada por Freud para explicar o desenvolvimento de uma criança. Em Succession, tais sentidos se refletem claramente nas relações dos filhos com o pai, Logan: Kendall quer “matá-lo” (em vários momentos da série, Kendall tenta trair o pai, ou seja, destroná-lo da Waystar Royco). Connor, o primogênito, é um ponto fora da curva, e está perdido em seus devaneios (seu “sonho” é ser presidente dos Estados Unidos).
Já Roman, o rejeitado, quer a validação do pai, embora se esforce em mostrar que não se importa. Seus problemas, no entanto, se expressam na sua vida sexual: ele fala de sexo o tempo todo, mas não consegue se relacionar com suas parceiras. O único “contato” afetivo/ sexual que parece conseguir estabelecer é com Gerri (J. Smith-Cameron), uma executiva da empresa, já idosa, que, em certos momentos, xinga Roman para que ele se masturbe, numa clara metáfora à relação de Roman com a própria mãe (quase invisível na trama) e com o poder onipotente do pai. Não por acaso, Roman faz piadas de que vai furar os próprios olhos – referência a Édipo Rei, claro.
Por fim, temos a linda Shiv, a filha dos olhos do pai, com quem também tem uma relação de amor e ódio. Logan, aliás, protege-a na mesma medida que a trai, manipulando-a aos seus interesses. Shiv, junto a Roman, talvez seja a filha mais prejudicada pelo pai. Algo que vemos também em sua relação com seu noivo/ marido Tom (o ótimo Matthew MacFayden, um dos poucos alívios cômicos da série), para quem ela destina seus sentimentos mais sombrios. Basicamente, Shiv está com ele por vê-lo como um homem fraco, que pode ser esmagado - ou seja, o oposto de seu pai.
E há muito mais nas entrelinhas de Succession. É possível enxergar diálogos com parábolas bíblicas (como a do filho pródigo, no vai-e-vem sentimental entre Logan e Kendall), no sacrifício de Abraão do filho Isaac (quando Logan precisa escolher quem irá “sacrificar” entregando ao FBI – seria ele capaz de “matar” o próprio filho caso “deus” não interfira?), a história de João e o pé de feijão, entre outras. E isso tudo é apenas a ponta do iceberg.
Succession é um dramalhão impecável e uma das melhores coisas que a TV americana produziu nos últimos anos. A série está disponível em sua totalidade no HBO Max.
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