Casamento às Cegas Brasil explora o mito do amor romântico (crítica)

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Imagem: Netflix

Programas de namoro são um clássico na TV brasileira. Os mais velhos lembrarão do bailinho de Silvio Santos dentro do programa Em nome do amor, no SBT; os mais novos talvez tenham assistido ao “dança, gatinho” nas paqueras dentro do Hora do Faro, da Record, ou do flerte cômico no quadro “Xaveco”, do Domingo Legal. Daria até para questionar: por que a gente gosta tanto de testemunhar a busca alheia pelo amor?

Eu arriscaria várias respostas, mas tendo a pensar que tem menos a ver com o romantismo e, sim, com a oportunidade de ver (nos outros) o constrangimento que envolve inevitavelmente essa dança que é preciso dançar a cada vez que se procura uma cara metade. Por isso, mesmo, é claro que há aqui um prato cheio a ser explorado nos reality shows – e é nessa leva que podemos enquadrar Casamento às Cegas Brasil, a versão nacional do reality norte-americano que fez muito sucesso na Netflix.

Considero ótima a premissa de Casamento às Cegas. Baseia-se na ideia de que a maior parte das decisões no campo amoroso acontecem, em um primeiro momento, em cima de uma atração física, a qual seria mais superficial ou leviana em relação a outras camadas mais “profundas” (como a atração intelectual, por exemplo). Por isso, o reality show sugere aniquilar a questão visual (você conseguiria se apaixonar por alguém sem saber qual é a sua aparência?) e acelerar as demais etapas de um relacionamento (além disso, você seria capaz de se casar em 30 dias com a pessoa por quem está apaixonado?).

Os atritos entre os casais são o tempero de 'Casamento às cegas Brasil'.Os atritos entre os casais são o tempero de 'Casamento às cegas Brasil'.Fonte:  Netflix 

A premissa é falha pois confunde paixão (aquela espuma borbulhante da champagne que baixa depois do tempo) com amor (o líquido que permanece depois disso). Mas a graça da franquia Casamento às Cegas é que a parte do “apaixonamento” é apenas a primeira parte do experimento. A diversão começa mesmo depois que os casais se encontram e passam, nos episódios seguintes, tendo que lidar com o compromisso assumido com pessoas que mal conhecem. Ou seja, por mais que a série explore o mito do amor romântico (a ideia de que o amor, seja lá o que se entende que ele seja, é suficiente para “colar” os casais em união), ela comprova na prática que o buraco é bem mais embaixo.

Casamento às Cegas Brasil não deixa nada a dever ao original americano: é puro suco do constrangimento. A Netflix, de forma muito inteligente, não lançou a temporada inteira, e dividiu os episódios em várias etapas – o que gera expectativa na audiência e ajuda a driblar spoilers que estragariam a experiência. Nos primeiros episódios, assistimos aos foras que foram dados por participantes indecisos em relação a dois pretendentes; aos xingamentos eventuais que um ou outro recebe’ e, claro, à famigerada “dança do acasalamento” de quem tenta conquistar ou ser conquistado.

E é claro que, como em todo o reality, a diversão está sempre centralizada na montagem do elenco. A química, nesse caso, está menos nos casais em si do que nos personagens e a perspectiva de entretenimento que eles prometem. Temos 10 participantes centrais aqui (não coloco quem é casal com quem para fugir do spoiler): Ana Prado, uma modelo com ares cult; Carolina, uma advogada negra cujas posições fortes causarão certos atritos no programa; Dayanne, uma loira sarada que não parece se levar muito a sério; Fernanda, uma esteticista cheia de dúvidas; Luana, uma psicóloga meio ciumenta; Hudson, que parece ser o mais novo do grupo; Lissio, um empresário (a profissão mais genérica que existe) com ares meio sérios que destoam dos demais; o engraçadão Rodrigo, que lembra um pouco Luciano Huck; o romântico Shayan, que é iraniano; e por fim o aventureiro Thiago, que gosta de viver a vida nos ares (metafóricos e literais).

Juntos, eles se metem em dramas que não são exatamente originais, mas muito comuns na vida de qualquer sujeito que já se meteu na empreitada que é um relacionamento. Há aquela rivalidade cada vez comum entre mulheres empoderadas que incomodam a masculinidade padrão. Há os desafios de familiares (especialmente mães) que prometem se meter na vida conjugal alheia. Há o típico caso de mulheres que querem falar sério e homens que fogem de DRs.

É claro que um programa como esse é altamente editado, inclusive no que diz respeito a criar algum tipo de tensão – dá para notar que muitos conflitos são gerados pelo modo que a edição sobrepõe cenas ou então usa efeitos de trilha sonora. Mas quem se “entrega” a Casamento às Cegas Brasil e outros programas do tipo já deve estar acostumado: acredito que verossimilhança e realismo não sejam, necessariamente, as maiores preocupações para os fãs de reality shows, de modo geral.

No entanto, o meu incômodo principal com Casamento às Cegas Brasil diz respeito à “autoedição” exagerada dos próprios participantes. Explico: o programa se baseia naquele ditado do “amor é cego” que, como comentei no início do texto, tem a ver com a ideia de eliminar a parte visual como uma forma de encontrar o “amor verdadeiro”. Ocorre, no entanto, que nenhum dos participantes do programa é alguém fora do padrão – todos se encaixariam em algum tipo de parâmetro de beleza ou pelo menos de apresentação.

Além disso, os participantes estão sempre arrumados, com roupas da moda e maquiagem e cabelo impecáveis. Por isso, no fundo, a premissa da diversidade de corpos e rostos (é possível se apaixonar por alguém que você consideraria feio, mas cuja personalidade é atraente?) fica muito aquém do que poderia ser, se tivéssemos de fato discutindo a “cegueira” do amor.

Mas nada disso, claro, chega a estragar a diversão que é assistir a mais um programa que nos proporciona o prazer de sermos voyeurs na paquera alheia. É legal porque somos capazes de rir daquilo que os participantes passam, da forma constrangedora que às vezes se portam - além, claro, de recordamos das nossas próprias desventuras amorosas. Por isso, Casamento às Cegas Brasil, com um tempero legitimamente nacional, é entretenimento na certa.

Maura Martins é jornalista, professora e editora do portal de jornalismo cultural Escotilha. No TecMundo, é colunista nos cadernos Minha Série e Cultura Geek.

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