Round 6: o que a série da Netflix nos ensina sobre reality shows? (coluna)
Se você habita no planeta Terra e está minimamente ligado no mundo das séries, com certeza já pelo menos ouviu falar de Round 6, da Netflix. A série sul-coreana é um sucesso absoluto em todos os países que o streaming está presente, inclusive tendo chance de se tornar a produção mais assistida da história da Netflix.
A grande repercussão da série faz com que as leituras em torno dela sejam múltiplas. É possível falar de Round 6 tanto no âmbito econômico, por exemplo, quanto no da dramaturgia ou na questão cultural da Coreia do Sul. Por isso, sugiro nesta coluna outro ângulo que me veio à mente enquanto a assistia: a sua relação com os programas estilo reality show de convivência, tais como A Fazenda, Big Brother Brasil e Power Couple Brasil. Será que o fenômeno sul-coreano nos ajuda a entender melhor os mecanismos deste tipo de atração?
Primeiramente, deixo claro aqui que achei Round 6 divertidíssima e envolvente, ainda que não exatamente original. O mote da competição mortal, como muitos textos já apontaram, relembra Jogos Vorazes. O grande tema central (até onde você vai por dinheiro?) é universal e já foi explorado muitas vezes na cultura pop. Os personagens são um tanto estereotipados (o velho negligenciado, o vilão sem qualquer camada de bondade, o estrangeiro ingênuo, o pobre honesto, a mulher traidora), e as viradas do roteiro (como a identidade do líder, o motivo do jogo) são razoavelmente previsíveis. No entanto, reitero que tudo isso não desmerece o entretenimento gerado pela série e a popularidade que ela alcançou é muito justificada.
Como disse, ao maratoná-la, não pude deixar de criar em minha cabeça paralelos com outros programas que aparentemente nada têm a ver com Round 6. E, a partir daqui, trago algumas informações que podem ser spoilers a quem não viu a série. Round 6 se centraliza em torno do seguinte mote: várias pessoas na Coreia do Sul começam a ser abordadas por um homem estranho que começa a desafiá-las para jogar um jogo infantil, em troca de dinheiro. Ao final, elas recebem um cartão com um número de telefone, que as convida para participar de um grande desafio. Elas topam, claro (caso contrário, nem haveria série).
O tema de 'Round 6' é universal: o que se é capaz de fazer por dinheiro?Fonte: Netflix
Os que aceitam são levados a um lugar isolado, onde ficam confinados com mais de 400 pessoas que se enfrentarão em seis jogos, que elas não sabem quais são. A recompensa da vitória nos jogos é um prêmio milionário em dinheiro vivo que vai aumentando a cada etapa. O que elas não sabem é que os jogos (todos baseados em brincadeiras infantis da cultura sul-coreana) só se encerram com a morte dos jogadores. A brincadeira, portanto, é letal.
Ou seja, essas pessoas só irão ganhar dinheiro à medida que outras morrem – o que, muitas vezes, as incitará para que trapaceiem, criem complôs, sabotem os colegas, e mesmo apunhalem os colegas pelas costas. Por isso, a discussão de fundo sempre gira em torno do tema: o que você aceitaria fazer em troca de uma grande quantidade de dinheiro? E, afinal, por que ter muito dinheiro é tão importante? O que ele significa?
No mundo contemporâneo, existe uma outra moeda de troca que talvez valha tanto (ou mais) que dinheiro, que é a visibilidade. Antes se falava sobre “ser famoso”, mas hoje, esse termo não é mais suficiente. Quase ninguém mais quer ser “famoso”, pois o termo se tornou pejorativo, mas quase todo mundo gostaria de se tornar mais “visível”, pelo menos dentro de um nicho, pois se entende que visibilidade pode gerar mais frutos que a própria fama, compreendida como vazia.
Todos nós vivemos dentro de uma realidade em que há uma espécie de “corrida do ouro” em torno desse bem tão desejado, que se expressa de várias maneiras: na exposição de si mesmas que as pessoas fazem na internet, no intuito de se tornarem influencers, por exemplo. Muitos tentarão, mas poucos conseguirão chegar lá. Ou seja, poucos se tornarão alguém com muitos seguidores, que recebe dinheiro para fazer propaganda e outras regalias, ou que tem oportunidades que outras pessoas não recebem. Uma outra estratégia para ganhar essa corrida é tentar uma vaga em um reality show, que irá dar um grande upgrade no seu público e, consequentemente, na sua visibilidade.
Se os pobres devedores de Round 6 vendem suas vidas por dinheiro, daria para dizer que, de certa forma, quem topa entrar em A Fazenda ou no BBB também está vendendo a sua vida – no sentido de que nada mais será o mesmo depois que a pessoa sair de lá. É quase um “jogo mortal”, mas com suas especificidades. Quem passar pelas porteiras de um reality show, colocará tudo em risco: pode sair de lá como alguém querido pelo país todo, com inúmeras possibilidades para a vida (como Juliette e Gil do Vigor, do BBB 21) ou perder tudo o que construiu durante anos (caso, por exemplo, de Karol Conká, também no BBB 21).
As alianças inesperadas estão presentes tanto em 'Round 6' quando em 'A Fazenda 13'.Fonte: Record/ Playplus
Para ter melhores chances, é preciso, claro, buscar estratégias. Em Round 6, os jogadores, ao se darem conta dos riscos que correm, começam a formar alianças no intuito de sobreviver. Alguns se unem a amigos de infância. Outros se juntam com aqueles que, tais como eles, parecem abrir mão de qualquer ideia acerca de uma ética comum. Há os que focam nos que consideram ser mais fortes (e, de novo, quem será mais forte: o inteligente ou o mais bruto?).
Em A Fazenda 13, por exemplo, as alianças também estão a todo vapor. Alguns se unem por questões de raça (os negros, como Mussunzinho e Tati Quebra Barraco, desenvolveram amizade), de gênero (os homens ofendidos por terem sido chamados de machistas), e outros por razão de buscar oportunidades. E há, claro, as alianças involuntárias entre aqueles que foram excluídos de um grupo dominante – como Rico Melquíades e Erika, deslocados do chamado “grupo hegemônico”, e galgaram até uma simpatia do público que, naturalmente, não teriam.
Aqui está, talvez, a grande graça desse tipo de jogo baseado em realidade: os resultados, tal qual como em Round 6, são sempre imprevisíveis. Pode ser que um pai desempregado e fracote tenha boas chances num jogo em que tudo está contra ele. Pode ser que um ex-participante descompensado do De Férias Com o Ex que, inesperadamente, se insira numa dinâmica que o faça até parecer gente boa – ou pelo menos, alguém injustiçado.
E a parte mais incômoda, talvez, seja que nós também estamos dentro desse jogo. E quem somos nós nos reality shows? Eu diria: nós somos a ala VIP. Somos as pessoas que pagam caro (com nossa atenção, dedicada sob forma de audiência, que hoje vale muito) para assistir, de camarote, a outros seres humanos que se digladiam e colocam tudo a perder (em especial, a própria reputação, quando não a dignidade) a serviço de nosso bel prazer. Nós, no conforto da nossa casa, tomando nossos bons drinques, estamos há anos legitimando esses “jogos mortais” de quem está disposto a jogar tudo para o alto em troca de um bom prêmio. E você, também faria tudo por dinheiro, ou apenas gosta de assistir?
Maura Martins é jornalista, professora e editora do portal de jornalismo cultural Escotilha. No TecMundo, é colunista nos cadernos Minha Série e Cultura Geek.
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