The White Lotus: série acerta ao abordar a vida dos ricos (crítica)
Talvez poucas coisas nos fascinem tanto como acompanhar a vida das pessoas muito ricas. Em certa medida, elas são como animais exóticos: pouquíssimos humanos têm a experiência de saber o que é passar por esse mundo sem ter que se preocupar com dinheiro. Por isso mesmo, quase toda a população da terra adoraria espiar o que os ricos fazem quando ninguém está olhando.
O seriado lançado pelo HBO The White Lotus, considerado por muitos críticos a grande novidade televisiva deste ano, bebe exatamente nesta curiosidade. Ao longo dos seis episódios, acompanhamos as férias de 8 sujeitos em um resort paradisíaco no Havaí. Eles estão agrupados em três grupos: um casal que viaja para a sua lua de mel; uma milionária levemente perturbada, que vai ao Havaí levar as cinzas da mãe; uma família tresloucada que parece não enxergar seus problemas.
De forma inesperada, The White Lotus se inicia por um mistério: vemos Shane (Jake Lacy), o marido em lua de mel, esperando o voo para voltar aos Estados Unidos. Ele olha na janela e de lá vê um caixão sendo carregado para dentro do avião. O mote inicial é claro: alguém morreu no White Lotus. O resto dos episódios, portanto, será narrado em flashback, deixando no ar a pergunta sobre de quem é o corpo.
O truque narrativo é original, pois esta não é uma série de suspense. É difícil categorizá-la: embora seja uma comédia, os episódios possuem um tom melancólico acerca daquelas personagens, ainda que o olhar do criador e diretor, Mike White (roteirista do filme Escola do Rock), seja sempre ácido. Mas a riqueza do texto de The White Lotus está no fato que o comentário que a série faz acerca das questões de classe (as bases da exploração, muitas vezes silenciosa, dos ricos sobre aqueles que os servem) nunca é escrachado – o que seria a forma mais óbvia.
The White Lotus se inicia com a chegada dos turistas no Havaí. Eles são recebidos pelo staff do resort, coordenados pelo gerente Armond (Murray Bartlett), o personagem central da série. Ele explica aos novos funcionários a importância desse ritual de recepção - eles abanam aos visitantes, com sorrisos congelados que escondem suas próprias vidas. No hotel, eles não são pessoas, mas peças de um teatro que visa proporcionar aos pagantes a melhor experiência possível. Em outras palavras: significa que os funcionários devem ser invisíveis e apenas servir, quando solicitados. Os hóspedes, por outro lado, deixam claro desde o início aquilo que são.
E os personagens irão, ao longo dos seis episódios, ser desnudados não apenas como sujeitos, mas como “sintomas” de algum tipo de distorção social representado pelas classes abastadas. A solitária Tanya (Jennifer Coolidge, no melhor papel de sua carreira) está à beira de uma crise nervosa. Claramente deprimida, ela procura algum tipo de ajuda para sair de seu buraco existencial. Encontrará isso numa massagem fornecida no spa do hotel por Belinda (Natasha Rothwell), que, com conselhos genéricos, oferece aquilo que Tanya acredita estar procurando.
The White Lotus/HBO
A relação, no entanto, é parasitária. Tanya se apoia na ajudante como amiga (o que faz lembrar um pouco daquele discurso classe média de tratar a empregada doméstica como “praticamente da família”- o que, na prática, acaba significando negligenciar direitos trabalhistas). Belinda, por outro lado, vê em Tanya uma oportunidade de deixar de ser explorada pelos patrões, e passa a confiar, com certa ingenuidade, nas promessas de amizade de outra pessoa rica que não os donos do resort.
O casal Patton, em lua de mel, é constituído sob medida para causar indignação: jovens e bonitos, são o próprio estereótipo da felicidade de Instagram. Mas as rachaduras logo aparecem: Shane, um filhinho de papai que teve a lua de mel paga pela mãe, se revolta porque o quarto que recebe no White Lotus não era o mesmo das fotos. Passa, então, o resto da viagem querendo algum tipo de reparação – e por isso passa a infernizar o gerente Armond, cuja “máscara” de hospitalidade começa a derreter em tempo acelerado. A derrocada de Armond é um dos pontos altos de The While Lotus: dependente químico, o gerente se depara com uma série de episódios (dentre eles, o stress causado pelos hóspedes abusivos) que desafia sua sobriedade.
Mas a cereja do bolo, sem dúvida, está na família Mossbach. Nicole (Connie Britton) e Mark (Steve Zahn) são um casal em crise: ela, uma chefe poderosa do ramo da tecnologia, e ele, um marido que vive à sua sombra. É o dinheiro dela que paga as férias que eles passam no Havaí com os filhos, Olivia e Quinn, além da amiga de Olivia, Paula, uma moça negra que parece ter recebido uma caridade dos Mossbach ao estar ali – e que será uma peça chave no desenrolar da série.
The White Lotus/HBO
Quinn é um adolescente enfiado em aparatos tecnológicos, mesmo quando está num cenário paradisíaco (que, na minha visão, é o personagem com a virada mais interessante de The White Lotus), enquanto Olivia e Paula, duas jovens arrogantes, compartilham piadas internas sobre todos que as cercam. As amigas funcionam quase como um alter ego do criador da série, pois parecem fazer os comentários debochados que ele gostaria de fazer (mas temos aqui mais um truque narrativo: logo descobrimos que elas são tão tóxicas quanto os que criticam).
De texto afiado e construído por recursos poucos óbvios, a série The White Lotus é uma obra provocativa pois traz múltiplas camadas para o deleite dos espectadores. É engraçada, mas constrangedora. Os personagens que parecem se “salvar” - pois aparentemente têm noção de que sua existência só é possível se ignoram a exploração de outros – são, no fim, tão nocivos quanto os outros.
Preste ainda atenção nos easter eggs contidos nos episódios – como, por exemplo, nos vários livros que aparecem durante a série. Uma série imperdível da HBO.
Maura Martins é jornalista, professora e editora do portal de jornalismo cultural Escotilha. No TecMundo, é colunista nos cadernos Minha Série e Cultura Geek.
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