O Irlandês mostra um Scorsese melancólico e reflexivo (Crítica)
Um olhar desatento pode induzir o espectador ao erro de achar que O Irlandês se parece com os filmes de máfia que colocaram a carreira de Martin Scorsese nos trilhos nos anos de 1990, como Os Bons Companheiros (1990) e Cassino (1995) – suas obras da década anterior são ótimas, evidentemente, mas foram mal recebidas pelo público o que, combinado com um vício em drogas, deixou sua carreira em maus lençóis. A produção da Netflix, em exibição em cinemas selecionados, lembra muito estes dois filmes. Está tudo lá, do elenco aos temas, com uma diferença: Scorsese agora está 30 anos mais velho, o que lhe dá uma certa perspectiva.
No filme Robert De Niro, o mais frequente dos colaboradores de Scorsese, encarna Frank “O Irlandês” Sheeran, um ex combatente da Segunda Guerra Mundial que trabalha como motorista de caminhão. Sua vida se cruza com a de Russell Buffalino, papel de Joe Pesci – que deixou a aposentadoria especialmente para esse papel –, um chefão da máfia italiana, que o coloca nas graças de Jimmy Hoffa, interpretado por Al Pacino, o presidente nacional do sindicato dos caminhoneiros e um dos mais poderosos homens da américa nas décadas de 60 e 70. Outros velhos conhecidos do cânone do diretor também estão lá, como Harvey Keitel e Ray Romano ou Bobby Cannavale, estes dois últimos egressos das séries de TV que Scorsese produziu para a HBO.
A narrativa sem pressa, com De Niro narrando os acontecimentos e nos guiando pela trama enquanto acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos, parece evocar o espírito de Os Bons Companheiros, de fato. Com a diferença central de que O Irlandês é mais afetado pelos acontecimentos reais, como a eleição e assassinato de John F. Kennedy e o caso Watergate. São questões importantes, já que Hoffa, Sheeran e Buffalino são figuras importantes na história mais ou menos recente dos EUA, ainda que, como o próprio Scorsese faz questão de frisar ao final do filme, já estejam absolutamente esquecidas.
A noção de “esquecimento” é central para a estrutura que Scorsese propõe. O Irlandês é contado do ponto de vista de um velho e debilitado Sheeran, que reflete sobre sua vida, os múltiplos assassinatos, a escalada pelo poder, o conflito entre os interesses dos grupos mafiosos e a ambição política dos sindicatos, nem sempre coincidentes, quase sempre conflituosas. Como em toda a obra do cineasta, não há mocinhos ou bandidos, mas sim seres humanos falhos em sua totalidade. Ao incluir a perspectiva de um moribundo, porém, Scorsese questiona não apenas a vida do personagem, mas a própria noção de existência, informada, claro, pelo cristianismo que marca sua obra.
O que de fato importa na vida? Parece se perguntar Scorsese. Qual é o legado real de um homem que abraçou a violência como forma de expressão e usou sua família como desculpa para exercê-la quase indiscriminadamente? Daí a importância de acompanhar a trajetória de Sheeran e não Hoffa, Buffalino ou outra figura que em tese seria mais importante para a história – Hoffa, inclusive, já foi biografado em Hoffa – Um Homem, Uma Lenda (1992), dirigido por Danny DeVito, com Jack Nicholson no papel central. O personagem de De Niro reenquadra a glamurização que o cinema faz da violência e estilo de vida da máfia desde antes de Scarface: a Vergonha de uma Nação (1932), de Howard Hawks. É quase como se O Irlandês fosse uma espécie de anti filme de máfia.
O curioso, afinal, é que O Irlandês parece só possível de ser feito pelas mãos de um cineasta que já viveu tudo o que Scorsese viveu. Ao mesmo tempo, há uma vibração e apreço pela tecnologia que são comuns em cineastas mais jovens. Muito do êxito do filme, por exemplo, está no uso de máscaras digitais que rejuvenescem e envelhecem De Niro, Pesci e Pacino ao sabor das necessidades da trama. Nas mãos de qualquer outro, este recurso iria distrair o espectador, comprometendo a imersão na trama. Especialmente em 3h30 de projeção. Nas mãos de Scorsese, temos um épico como pouco se vê no cinema.
Por Luiz Gustavo Vilela via nexperts.
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